Tudo sobre a Ética Argumentativa (1)


O "Tudo sobre..." no título não é exagero. O objetivo desta série é apresentar um debate completo sobre a Ética Argumentativa, desde o início, com base no que Hoppe originalmente escreveu, até o estágio atual do debate deste tema, passando pelas contestações e respostas a elas, tomando sempre o cuidado de separar e identificar cada parte do debate e, principalmente, expondo o tema da forma mais acessível que eu conseguir. Se você não sabe nada sobre a Ética Argumentativa, esta série de posts é para você.
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A Ética lida com a questão do justo e do injusto, do certo e do errado, enfim, tenta responder à questão "De que forma devemos agir?". Uma proposição do tipo "Matar é errado", por exemplo, é uma proposição Ética e quer dizer que "não devemos matar". Neste sentido, podemos considerar que uma ética (com "e" minúsculo) é um conjunto destas proposições, enquanto a Ética (com "E") é o estudo dessas proposições.

Mas "matar é certo" também traz um dever-ser — no caso, o de matar. Ela também é, portanto, uma proposição do tipo ético. Como descobrir qual das duas é verdadeira? Entramos então na parte da Epistemologia Ética, isto é, no estudo não apenas de quais são as proposições Éticas, mas de como descobrir quais delas são verdadeiras e quais são falsas.

Existem várias propostas de epistemologias para a Ética. Uma bastante popular, por exemplo, é o jusnaturalismo, no qual tenta-se obter o ético avaliando-se aquilo que é "conforme a natureza das coisas". Outro exemplo seria o consequencialismo, que busca determinar o certo e o errado com base nas consequências geradas pelas ações.

A Ética Argumentativa é interessante pois se inicia com a proposta de uma epistemologia inegável para a ética, a qual permite encontrar um, e apenas um, conjunto de proposições verdadeiras. Em outras palavras, a Ética Argumentativa é como um filtro, pelo qual só passaria um único conjunto de proposições, isto é, uma única ética.

Como funciona esse filtro da Ética Argumentativa e qual seria a única ética capaz de passar por ele?

O NÚCLEO FUNDAMENTAL
O raciocínio fundamental da Ética Argumentativa pode ser exposto em 3 premissas.
1) Justificação é justificação proposicional
Toda norma, ao ser justificada, terá tal justificação feita proposicionalmente. Em outras palavras: sempre que a questão do justo for levantada, sempre que uma norma for defendida como justa ou injusta —ou seja, sempre que estivermos lidando com a Ética—, essa justificação será feita por meio de uma declaração, será uma defesa argumentativa: alguém estará dizendo que algo é justo ou não.

2) Uma argumentação, ao ser feita, já demonstra que alguns fatos e algumas normas são verdadeiras — eles são pressupostos da argumentação
Ao dizer qualquer coisa o falante demonstra, por exemplo, que está vivo (pelo menos no sentido de "dizer" enquanto "usar seu corpo, cordas vocais, etc. para emitir uma proposição"). Da mesma forma, e segundo o raciocínio da Ética Argumentativa, o ato de argumentar também demonstra a existência de determinadas normas (veremos a seguir quais normas são essas).

3) Nada que contrarie um pressuposto da argumentação pode ser justificado argumentativamente
Suponha que eu declarasse "eu estou morto". Considerando o exposto no item 2, percebe-se que há uma contradição entre o que eu falei ("estou morto") e um pressuposto ("falantes estão vivos") do próprio ato que eu executei. Existe uma contradição entre o conteúdo que foi dito e entre o ato que foi performado para dizê-lo — daí o nome contradição performativa. Dessa forma, o fato de eu ter agido para dizer algo demonstra que estou vivo, e isto demonstra como falsa a proposição dita por mim de que "estou morto".

O mesmo vale em relação às normas que são pressupostas do ato de argumentar. Qualquer proposição ética deve estar de acordo com tais normas, pois ao negá-las estar-se-ia tentando negar algo que seu próprio ato de negar já requer e demonstra como válido. Em outras palavras, podemos concluir que "Qualquer ética cujo conteúdo contrarie as normas da argumentação é injustificável". Isto é referido como o "apriori da argumentação".


QUE TIPO DE ÉTICA?
Que tipo de Verdade Ética esse núcleo fundamental nos fornece? Qual seria a extensão dessa verdade? Ela não seria válida e vinculativa apenas no momento e para a duração da própria argumentação e até mesmo apenas para aqueles que realmente participam nela?

Considere novamente a contradição performativa envolvida ao dizer "eu estou morto". Caso a pessoa dissesse isso amanhã, deixaria de haver a contradição? Haveria algum momento ou lugar em que não haveria tal contradição? Quando dizemos que alguma coisa é inegável argumentativamente, note que esta coisa é inegável hoje e continuará inegável amanhã. Era, aliás, inegável ontem também. Já era inegável, inclusive, mesmo quando ninguém ainda tinha pensado nessa história de contradição performativa e mesmo até antes de haver alguém capaz de saber coisas ou de argumentá-las. É inegável mesmo se alguma ou ambas as partes num debate não perceberem isso, e mesmo se inclusive nem houver uma outra parte envolvida e você estiver ponderando essas proposições sozinho, consigo mesmo. Uma vez que o pressuposto da argumentação não muda, uma verdade inegável argumentativamente também jamais mudará. Este aspecto é tratado como a transcendentalidade da Ética Argumentativa.

A crítica de que a Ética Argumentativa seria irrelevante e sem consequências pois argumentos só valeriam durante a argumentação e para as partes envolvidas é uma tese que teria que se aplicar a si mesma, e, portanto, tornar suas próprias críticas irrelevantes e inconsequentes também. Os críticos defendendo esta tese apenas falariam por falar, sem qualquer conseqüência fora da conversa. Pois, de acordo com sua própria tese, o que dizem sobre a argumentação é verdadeiro somente quando e enquanto eles o dizem e não tem relevância fora do contexto da argumentação; e, além disso, o que eles dizem ser verdadeiro é verdadeiro apenas para as partes envolvidas na argumentação ou mesmo apenas para eles, se não houver oponente real e disserem o que dizem em um diálogo interno apenas para si mesmos. Mas por que, então, alguém deveria desperdiçar seu tempo e prestar atenção a tais "verdades" privadas?

Mais importante e direto ao ponto: na verdade, esses críticos não estão envolvidos em conversa fiada ou em meras brincadeiras, é claro, mas em uma argumentação séria, ou seja, na apresentação de um suposto contra-argumento, e como tal e nesta capacidade, então, eles se tornam inescapavelmente enredados em uma contradição performativa ou dialética: porque eles realmente afirmam que o que eles dizem sobre a argumentação é verdadeiro dentro e fora da argumentação, ou seja, independente de se alguém realmente argumenta ou não, e que é verdade não só para eles, mas para todos. Isto é: ao contrário do que eles dizem, eles realmente perseguem um propósito acima e além do intercâmbio de palavras em si. Argumentação é um meio para um fim e não um fim em si mesma. É o próprio propósito da argumentação superar um desacordo ou conflito inicial em relação a algumas afirmações de verdade rivais e mudar as antigas crenças ou ações de acordo com o resultado da argumentação. Ou seja, a argumentação implica que se deve aceitar as consequências do seu resultado. Caso contrário, por que argumentar? Por isso, é uma contradição performativa ou dialética dizer, por exemplo, "vamos discutir se os salários mínimos aumentam ou não o desemprego", e depois acrescentamos: "e, então, independentemente do resultado do nosso debate, continuar acreditando no que já acreditávamos de antemão". Da mesma forma, seria contraditório para um juiz em um julgamento dizer "Vou descobrir quem de duas partes conflitantes, Peter e Paul, está certo ou errado, e depois vou ignorar o resultado do julgamento e deixe Peter livre, mesmo que seja considerado culpado, ou castigar Paul, mesmo que seja julgado inocente".

Dessa forma, conclui-se que a Ética Argumentativa nos fornece uma ética objetiva, válida de forma universal, em qualquer tempo e lugar, e para qualquer um, pois apenas uma ética desse tipo seria condizente com os pressupostos da argumentação, que são objetivos e válidos desta forma.


Agora que entendemos o método e os resultados obtidos pelo framework da Ética Argumentativa, podemos discutir quais são os tais pressupostos da argumentação e qual seria a única ética condizente com eles. Este será o assunto do próximo post.

Falácia - Apelo à autoridade abstrata


O tema desse post não está diretamente relacionado a Libertarianismo nem a qualquer questão em particular, mas acaba surgindo sempre. Identifiquei esta por conta própria e não achei em lugar algum nenhuma referência a ela, então... acho que é minha! =) Muitas vezes em debates as pessoas usam argumentos do tipo "meus argumentos estão de acordo com A Razão". Ou "de acordo com A Lógica eu estou certo..." Ou "A História" —sendo essa inclusive a base para o argumento do "Se você estudasse história saberia que estou certo".

Podem ser outras coisas, como A Economia, A Palavra de Deus, ou A Ciência... não importa, todas elas têm em comum o apelo a uma entidade com uma característica muito conveniente: ela não vai aparecer no debate para confirmar o que o evocante alegou, seja que ele está certo, seja que você está errado. Esse apelo a uma entidade abstrata tem tanto peso e valor quanto um apelo ao vento: nenhum!

Ela soa como um tipo de apelo à autoridade, mas é um pouco pior do que a versão tradicional dessa falácia: no caso de uma autoridade real, em tese você pode pelo menos discutir com essa autoridade apelada e mostrar-lhe que ela está errada, ou mostrar que ela não diz o que seu oponente alegou que ela dizia, etc. Mas no caso da Falácia de Apelo à Autoridade Abstrata não: você não pode nem sequer interagir com essa entidade —nem o seu oponente pode, o que aliás nos leva à questão de como diabos ele sabe que ela "diz" alguma coisa. Tudo que você tem é um sujeito agindo como se fosse o representante de uma entidade inacessível.

A primeira forma de lidar com essa falácia é apontando seu uso quando ele ocorrer. (Você pode linkar esse post, por exemplo)

Uma segunda coisa que você pode fazer é responder na mesma medida. Se seu oponente declara "A Economia / A História diz que a Crise de 29 foi causada pelo livre mercado" você pode responder simplesmente que "Não, A Economia / A História diz que a Crise de 29 foi causada pelas intervenções do estado". Pronto, cada um declarou algo sobre a entidade, o seu apelo vale tanto quanto o dele: nada. A saída possível é voltarem a discutir então qual foi o caso concreto para chegarem a alguma conclusão.

Por fim, algo que pode acontecer quando você apontar que alguém usou essa falácia é ele te acusar de "relativista" ou "subjetivista". Mas esse não é, absolutamente, o caso. A posição de um relativista seria dizer que existem várias vertentes sobre o assunto e que todas elas estão certas ou, ainda, que todas são igualmente válidas. Mas ao apontar o uso desta falácia você não está dizendo que "tudo está certo", e sim que há várias vertentes, e alguma delas pode estar certa, mas ninguém vai conseguir provar que a sua é a certa apenas apelando para uma entidade abstrata relacionada.

Ética e direitos animais (6): Contratualismo

Hobbes: "O homem é o lobo do homem".
Mas quando ataca seus pares o homem ainda é só o homem mesmo. Exceto o Jacob, talvez.
O contratualismo ético parte do ponto de vista de que o mundo é a guerra do todos contra todos. Andamos por aí usando da força à vontade, e então alguém propõe "ei, que tal se eu não inciar a força mais e você também não?". A partir disso, as pessoas aderem a esse acordo, abrindo mão do uso da força enquanto as demais abrirem também. Dessa forma, o padrão é cada um fazer o que quiser, o cessar fogo é a exceção contratada, e vinculada à reciprocidade. Nesse contexto, supõe-se que não há por que respeitar aqueles que não têm capacidade de entrar no acordo. Surge daí o raciocínio, por exemplo, de Thomas Hobbes, célebre defensor da ideia do contrato social, para quem os animais não teriam direitos porque
"É impossível fazer pactos com os animais, porque eles não compreendem nossa linguagem, e portanto não podem compreender nem aceitar qualquer translação de direito, nem podem transferir qualquer direito a outrem; sem mútua aceitação não há pacto possível."

Foge do escopo desse post avaliar se o contratualismo descreve corretamente ou não o fenômeno ético. A questão é: se ele for verdadeiro, implica na inexistência ou na impossibilidade de direitos a animais?

A resposta é claramente "não". Uma vez que direitos sejam fruto de acordos e contratos, nada impede que se pactue que, além de não nos agredirmos entre nós, também não iniciemos agressão contra terceiros. Esta já é, inclusive, a premissa usada para se pactuar direitos a incapazes humanos, os quais claramente não podem ser parte em pactos — nada impede, portanto, que seja aplicada a indivíduos de outras espécies em igual situação de incapacidade.

Para efeito de comparação, consideremos também o quanto o contratualismo é diferente da visão de uma ética objetiva. Isto é importante pois libertários frequentemente rejeitam o contratualismo e alegam defender uma ética objetiva, mas acabam recorrendo em seus discursos a várias premissas que só fazem sentido no contratualismo.

Numa visão ética objetiva, encontra-se a verdade ética de que agredir é errado e ponto final, objetivamente — é errado quer os indivíduos saibam disso ou não, tenham pactuado isso ou não; já era errado antes de o primeiro homem nascer, continuará sendo depois que o último morrer. Note que isso é basicamente a negação de tudo que o contratualismo, uma visão ética subjetiva, nos traz. Uma ética objetiva existe e vale independentemente do que façamos, uma ética subjetiva só existe e vale após nós a pactuarmos e conforme o pactuado.


No contexto da ética objetiva, entretanto, nós não somos mais a razão de ser da ética: a verdade ética objetiva apenas existe, e nós simplesmente somos capazes de conhecer tal verdade. Se esta verdade é que agressão é antiética, a vida na Terra ser claramente construída em cima de condutas antiéticas não a altera — isso seria simplesmente uma tentativa de "naturalizar a verdade", supondo que ela tenha algum compromisso em declarar como corretas as coisas como elas forem na natureza.

Em vez de ser uma ferramenta para promover a utilidade das nossas sociedades. a ética objetiva é uma verdade "impessoal" e não comprometida com nossos desejos e satisfação. Se ela atende nossos interesses, bom pra nós; se vai contra eles, paciência: então ela é um fardo do qual nós tomamos conhecimento, e se queremos ser éticos devemos tentar cumprir, em vez de ficar arrumando desculpa e 'tu quoque ético' de "ah, mas se o outro não sabe a verdade então eu faço de conta que a verdade não vale em relação a ele".

Essa visão da ética objetiva nos é bastante clara quando pensamos nos incapazes humanos: nos vem imediatamente à mente que o princípio ético é que quanto mais incapaz outro for, mais consideração ética, tutela e cuidado ele merece. Porém quando se cogita que o incapaz é um animal aí algumas pessoas pulam fora da esfera objetiva, e começam a alegar exatamente o contrário do princípio: agora quando mais incapaz o outro for, mais a pessoa quer fazer o que quiser com ele porque ele não teria "assinado" o tal "contrato de cooperação mútua".

De forma similar ao que foi apontado no post sobre a premissa sobrevivencialista, se queremos brincar de discutir éticas objetivas e impessoais, tudo bem, mas tenhamos a decência de não misturar nela pressupostos éticos subjetivos quando a impessoalidade que se buscava de início apontar numa direção inconveniente ás nossas pessoalidades.