A desnecessidade do livre-arbítrio


No post anterior, Praxeologia: o algoz do livre-arbítrio, falei sobre como a praxeologia prova a inexistência do livre-arbítrio, mostrando que, nas palavras de Mises, a vontade não é “livre” no sentido metafísico do termo. A herança e o meio ambiente moldam as ações do ser humano. Sugerem-lhe tanto os fins como os meios. Mas, uma vez tirado o livre-arbítrio do caminho, como fica a responsabilização das pessoas? A ética e o direito não estão baseadas na ideia de um livre-arbítrio? Elas não ruiriam sem ele? A resposta é "não" e eis o porquê:

Eu não sei se a ideia de livre-arbítrio se originou com a teologia, mas arrisco afirmar que, pelo menos atualmente, esta é a única área que realmente requer a existência desse conceito. Isso fica claro quando imaginamos um julgamento divino. Deus diz 
Bem, Sr. Fulano, estou vendo aqui que o senhor foi um estuprador de criancinhas, tisc tisc, então o senhor pode estar se encaminhando à porta da esquerda onde o senhor poderá estar fazendo o seu check-in no inferno, tenha um bom dia. PRÓÓXIM...
Mas —brada o Fulano—  eu só estuprei criancinhas porque tinha um desejo disso! Se o senhor não queria que criancinhas fossem estupradas, por que me criou com esse desejo e obtendo estados de maior satisfação ao satisfazê-lo?
na-na-ni-na-não —responde Deus— era pra você ter tido força de vontade e resistido a esse desejo! Demonstrado virtude e essas coisas, sacou?
espera aí, mas também não fui eu quem escolhi quanta força de vontade eu teria. Eu sou tão fraco e sem virtude quanto VOCÊ me fez!
E daí em diante. Então é fácil perceber que em algum momento nós vamos precisar de algo para quebrar o vínculo causal entre criador e criatura nesse julgamento — caso contrário o Criador também seria culpado, mesmo que indiretamente, pelos pecados das criaturas e após o julgamento, se ele é realmente justo, deveria pegar a si próprio pelo colarinho também e se conduzir ao inferno junto com o pecador. Mas então não é a ética, tribunais, nem a justiça que requerem livre-arbítrio: é apenas o contexto de um julgamento entre criador e criatura que requer tal conceito. Fora disso não há qualquer razão para o livre-arbítrio — apesar de muitos que já abandonaram fundamentações no divino para seus raciocínios não terem percebido isso e continuarem carregando esse conceito por aí sem necessidade.
No mundo real os julgamentos ocorrem apenas entre criaturas mesmo. "Culpa", "escolha" e "responsabilidade" aqui assumem sentidos práticos. Um Juiz não precisa evocar livre-arbítrio para determinar que um estuprador seja afastado do convívio social, porque o máximo que o estuprador poderia provar ao falar sobre determinismo é que os estupros não são culpa dele e sim de elementos da natureza que ele não controla, mas isso não faz diferença nenhuma desde que ele não está sendo afastado da sociedade porque "é mau" e sim porque causa danos ao resto dos indivíduos. Ele é culpado pelo estupro porque é ele, aquele corpo específico, o causador das agressões em análise. É aquele corpo o culpado pelos estupros no sentido de que encarcerar aquele corpo em particular é que fará cessar os estupros, e não algum outro corpo qualquer.

Quando falamos de "escolha", interessa à justiça avaliar se o cérebro humano executa alguma ação deliberadamente (nada de "livremente") ou se ela é processada em nível subconsciente, isto é, se ela está sujeita a ser influenciada por inputs externos ou se o cérebro do sujeito vai continuar fazendo o que faz independentemente dos inputs porque simplesmente eles não são levados em consideração nesses processos.

Quando é o caso de que inputs são levados em consideração, a pena se justifica em suas funções de prevenção geral e especial. Na prevenção geral, espera-se que outros indivíduos levarão em conta a insatisfação causada pela punição prometida e aplicada para não praticarem a Ação criminosa; já a prevenção especial dirige-se a dissuadir a reincidência do próprio criminoso, que não deseja sofrer nova insatisfação.

Quando é o caso de que inputs não são levados em consideração, se o sujeito perturba a ordem social e não há como curar seu comportamento, com medicações, tratamentos e etc. ele ainda vai preso do mesmo jeito. Muda-se apenas o nome —"internação compulsória" em vez de "prisão", ou similar.

Um outro elemento a se levar em consideração é a probabilidade de reincidência. Em certos casos um indivíduo pode ter cometido um crime, como matar alguém, ou roubar um carro, mas fez isso por um motivo que não ameaça a ordem social ou até mesmo a preserva: ele matou um criminoso, ele roubou o carro para levar uma grávida ao hospital. Nesses casos, como a reincidência é improvável ou mesmo não danosa, a pena tende a ser reduzida ou até eliminada completamente.

Que falta fez o conceito de livre-arbítrio em qualquer dos parágrafos acima?
Convido você a deixar nos comentários alguma situação relacionada à Ética em que você acredite que o livre-arbítrio é essencial. Talvez haja, quem sabe. Mas enquanto não aparece, deixemos o livre-arbítrio restrito apenas ao contexto de onde ele nunca devia ter saído: as ladainhas dos padres.