"Você pode ignorar a realidade mas não pode ignorar as consequências de ignorar a realidade", esta frase é da Ayn Rand e cabe bem no caso atual do ""negro morto no supermercado""". A narrativa predominante é de que "foi morto porque era negro".

Se é este o problema, qual seria a solução? Criar mecanismos para que seguranças não sejam racistas; mais especificamente, mecanismos para que seguranças sejam mais complacentes com negros.

Mas quanto podemos concluir como "racismo" o caso em questão? Um cidadão faz uma """"brincadeira"""" (cujo teor, curiosamente, ainda não foi revelado) com uma caixa de supermercado a ponto de ela chamar a segurança, dá um SOCO NA CARA DOS SEGURANÇAS e acaba morrendo depois de espancamento: ele foi realmente morto "porque era preto"? E quando se revela, em sua ficha criminal, que ele já tinha histórico em fazer """brincadeiras"" em mercados? (a tal rua A J Renner 1280 onde constam várias ocorrências de ameaça e lesões corporais na ficha do sujeito é um mercado - claro que os seguranças não consultaram a ficha previamente e aí decidiram matá-lo como punição por esse histórico, trago esse dado no sentido estatístico: alguém que se expõe a essas situações muitas vezes, como é o caso dele, uma hora vai dar ruim).

Então difícil emplacar a narrativa de que "morreu só porque era preto". Mas esse é o entendimento que se tenta oficializar. Porém não é um caso de seguranças que precisam assistir palestras do BlackLivesMatter, e sim de seguranças que precisam aprender técnicas de imobilização mais eficientes do que "dar socos na cabeça de alguém até ele cair". Voltando à frase da Ayn Rand, você até pode fazer de conta que o problema é racismo, mas não pode fazer de conta que uma solução pra esse falso diagnóstico vai funcionar.

Ética e direitos animais (9) - A "prova" de Paulo Kogos


Neste post comentarei o artigo Prova de que animais não possuem direitos de Paulo Kogos, cuja proposta é demonstrar que, seja a ética objetiva ou subjetiva, em nenhum dos casos animais teriam direitos.

Obs: Kogos mistura em alguns itens o que seriam várias premissas. As divisões em [a], [b], [c]... foram introduzidas por minha conta para facilitar a análise. Peço desculpas, pois ainda assim esse texto ficou difícil de acompanhar, mas como você poderá ver essa dificuldade ocorre porque o próprio argumento original de Kogos está mal estruturado.

“1) A consideração ética é inviolável e não-negociável e deriva da natureza das coisas”.
De início a premissa soa verdadeira, até por estar formulada de forma bastante vaga. Mas será usada de forma falaciosa à frente. Sigamos.

"2) [a]Não é da natureza dos animais viver em sociedade de forma inter-especificamente harmônica, [b]nem é compatível com a natureza dos homens sobreviver tratando os animais como detentores de direitos."
A parte [a] não é totalmente verdadeira, e, de forma mais importante, é eticamente irrelevante. Esta parte [a] basicamente será usada para dizer que se seres incapazes vivem de determinada forma, os seres capazes estão autorizados a se comportar desta mesma forma em relação a eles. Exemplificando em termos práticos, é literalmente dizer que se pacientes psiquiátricos, por exemplo, se agridem, é correto irmos lá agredi-los também.

Na parte [b] Kogos não especifica com qual aspecto da natureza humana é incompatível o tratamento de animais como detentores de direitos, nem em qual extensão (total? parcial?). Falta aqui um detalhamento de quais situações ele tinha em mente para dizer que direitos animais não são compatíveis com a natureza humana: eu posso pensar em vários direitos que não têm incompatibilidade nenhuma. Qual seria a incompatibilidade entre a natureza humana e, digamos, o direito de um animal a não ser torturado? Você precisou torturar algum animal hoje para satisfazer sua natureza humana? (Espero que não). Outro exemplo: se ele estiver dizendo que é incompatível com a natureza nutricional do homem tratar animais como sujeitos de direitos, milhares de veganos vivos, que se abstêm de consumo animal, provam que isto é falso, podendo-se dizer no máximo que estes veganos experimentam restrições em seu consumo de bens. Portanto, da forma geral como está, a premissa é claramente falsa.

Mas suponhamos que haja de fato incompatibilidade com algum aspecto qualquer da natureza humana. Surge a questão da extensão: a incompatibilidade é total ou parcial? Suponhamos as agressões A, B, C e D praticadas contra animais. Pode ser o caso que apenas a agressão A (digamos, "matar para obter determinado nutriente") seja necessária a nossas naturezas, sendo B, C e D dispensáveis sem prejuízo algum. Portanto, se apenas a abstenção de A é incompatível com nossa natureza, apenas ela estaria justificada, enquanto a prática de B, C e D (digamos, "touradas", "maltratar cachorros" e "obter Foie Gras mediante tortura de patos") seguiriam injustificadas. Caso se tente evocar a premissa (1) contra esse cenário, ocorrerá aí o uso falacioso dela. Tal tentativa dirá algo como "a ética é não-negociável! Os deveres são plenos ou não são nada!" (exatamente como Kogos diz no final do silogismo), no sentido de que o set ABCD deve ser ou aceito ou rejeitado por inteiro. Ora, mas se, também conforme (1), a ética deriva "da natureza das coisas" e a natureza é tal que apenas a abstenção da agressão A é incompatível com a natureza humana, a conclusão só pode ser que apenas tal agressão A estaria justificada, enquanto BCD seguem não estando — e isto, aí sim, é inviolável e inegociável.

Já temos portanto problemas na premissa (2), cuja parte [a] é irrelevante e [b], mesmo fazendo concessões, já não leva necessariamente à conclusão contra direitos animais sustentada por Kogos.

“3) Tratar os animais como sujeitos de direito implica em [a]extinguir a humanidade ou [b]relativizar tais direitos, tornando-os parciais e utilitários.”
Neste 3[a] Kogos reafirma o ponto [b] de (2), que já vimos ser falso. 

Já em 3[b], temos a acusação de que, alternativamente à extinção suposta em 3[a], os direitos animais teriam de ser parciais e utilitários. Primeiramente, é curioso como jusnaturalistas conseguem, numa mesma frase, reclamar de utilitarismo ao mesmo tempo em que evocam a sobrevivência da espécie, que é um critério puramente utilitário (e coletivista).

Agora, a mera acusação de utilitarismo não é refutação, necessitando da premissa implícita e não demonstrada (porém popular entre ancaps) de que o utilitarismo ético é falso. Talvez seja, quem sabe, mas não basta meramente "xingar" alguma coisa de utilitária para refutá-la. Já sobre a acusação de relativismo, na verdade são os opositores de direitos animais que sempre têm de recorrer a relativismos — Rothbard, por exemplo, assumida e explicitamente declara que a visão de direitos naturais é “relativa à espécie”. (Observe que o ponto aqui não é que opositores da causa animal às vezes cometem relativismos, e sim que, por definição, a proposta de direitos relativos à espécie é intrínsecamente e inescapavelmente uma forma de relativismo de direitos. A oposição aos direitos animais é exatamente isso, como se pode ver nesta premissa (3) mesmo do Kogos: uma proposta de direitos parcial —"apenas humanos!"—  e utilitária —"apenas humanos, pelo bem dos humanos!"). Não há coerência alguma em rejeitar direitos animais porque supostamente seriam "relativos e utilitários" enquanto o próprio Kogos defende uma concepção de direitos que é assumidamente relativa e utilitária.

“4) [a]Se o direito não segue da ética ou segue de uma ética relativizada [b]ele passa a ser questão de imposição e competição evolutiva [c]na qual dar direitos a outras espécies é uma estratégia estúpida de sobrevivência.”
Em seu argumento, Kogos tenta demonstrar a inexistência de direitos animais em 2 hipóteses, começando nesta premissa (4) pela hipótese de um mundo “sem ética”. A estratégia então é ponderar que, mesmo num cenário [a] no qual o direito “não seguiria a ética”, ou no qual “seguiria uma ética relativizada”, entraríamos num contexto [b] pautado por “competição evolutiva”, mas, sendo esse o contexto, os tais direitos dos animais deveriam ainda assim ser descartados conforme [c], por irem contra nós na “competição evolutiva”.

Avaliando-se a relação entre [a] e [b], a princípio a resposta é "sim": um direito que [a]não seguisse a ética levaria a [b], um contexto que se resume a imposição e competição evolutiva. Mas essa acusação cabe perfeitamente é contra os opositores da causa animal. Observe que a estratégia especista é embasar sua ética relativista em cima exatamente de [b] “imposição e competição evolutiva”, negando direitos aos animais para garantir o “nosso” sucesso nessa empreitada. Então estando corretos 4[a] e [b] (e eu acredito que estejam), está aí a demonstração de que é a oposição aos direitos animais que não segue da ética.

Ainda, por curiosidade, note que o “nós” considerado na “competição evolutiva” é uma mera arbitrariedade coletivista: a competição evolutiva, na verdade, ocorre antes de tudo a nível individual, com indivíduos competindo por recursos para transmitir seus genes adiante. Assim, alguém que realmente parta da “competição evolutiva” não precisa propor ética nenhuma; em vez de “princípios universais” e toda essa ladainha fixa de “não-agressão”, o indivíduo deveria fazer o que lhe for mais conveniente para sobreviver e passar seus genes adiante, seja cooperando, seja agredindo (estuprando, por exemplo, se puder se dar bem com isso), conforme for analisado adequado caso a caso: o árbitro da “ética evolutiva” não são raciocínios éticos, e sim a realidade em si, que filtra ao longo do tempo quem sobrevive e quem não. Ou seja, há realmente uma incompatibilidade entre Ética e competição evolutiva mas essa observação mostra que são os especistas, ao proporem direitos para o coletivo humano em nome da nossa sobrevivência, que estão dando um argumento incompatível com a Ética.

Agora, [a] é apenas um espantalho. A proposta dos direitos dos animais não é de “direito não seguir a ética” nem de ser “ética relativizada” — como a ética dos especistas é. Os direitos dos animais são derivados de uma visão universal da ética, e em cima da qual o direito deve ser aplicado. 

Mais importante: [c], por sua vez, é um non-sequitur de [b], ou seja, mesmo se assumíssemos que “sobrevivência de espécie” seja critério ético, dar direitos a outras espécies não é necessariamente uma “estratégia estúpida de sobrevivência” por pelos menos 2 formas óbvias:
  1. Espécies diferentes possuem papel importante na manutenção do equilíbrio ambiental necessário para o sobrevivência de todos, inclusive nós, portanto a decretação, ainda que parcial e condicional, de que determinados animais não sejam, por exemplo, caçados em certos períodos ou ao atingirem certas quantidades, pode ser não só benéfica, como realmente essencial à sobrevivência. Então mesmo se a lógica de Kogos estivesse correta e a sobrevivência da nossa espécie fosse o parâmetro central da Ética, ainda assim isso não implicaria na inexistência completa de direitos animais advogada por ele. (Note que aqui realmente estamos falando dos benefícios evolutivos da decretação de direitos em si, e não de uma eventual e dificilmente executável proposta ancap de “apropriação de todos os animais por parte de um indivíduo ou grupo interessado para depois decidir pela proteção deles enquanto propriedades”).
  2. Cabe aqui também o argumento do psicopata/serial killer: um ambiente que não pune agressão animal ajuda no processo de dessensibilização e encorajamento destes indivíduos, os quais, após se iniciarem praticando em animais, passam a agredir humanos, indo contra a sobrevivência desta espécie.

Resumindo, a premissa (4) fracassa de pelo menos 3 formas: 1a- a acusação de imposição e competição evolutiva como resultado de não se seguir a ética aplica, na verdade, a propostas contrárias aos direitos animais como a dele; 2a- se o argumento da sobrevivência da espécie implica na inexistência de direitos frente a outras espécies, os direitos intra-espécie humana também são implodidos, dada a competição pela sobrevivência também a nível individual, intra-espécie; e 3a- erra factualmente ao alegar que direitos animais são contrários à sobrevivência da espécie.



Até aqui Kogos tentou demonstrar a inexistência de direitos animais no cenário "sem ética", mas como vimos, nenhuma das premissas (2), (3) e (4) se salvaram. A partir do item (5), Kogos tenta demonstrar a impossibilidade de direitos animais agora sob a hipótese de uma “ética transcendente”. 
“5) Se o direito é natural e segue de uma ética transcendente, não há como compreender o sujeito da ética (o outro) sem a ideia de que conhecemos: 
A) aspectos essenciais comuns aos sujeitos éticos; 
B) por analogia, a fonte transcendental da ética que por impor o dever ético denota hierarquia (superior aos sujeitos éticos).”
Não sei se a exigências em (A) e (B) só ocorrem “se o direito segue de uma ética transcendente”. A princípio me parece que qualquer ética requer a possibilidade de conhecer o outro e a fonte de tal ética. De qualquer forma, sigamos: 

“6A) A possibilidade do conhecimento de aspectos essenciais comuns aos sujeitos éticos é extensiva somente a humanos, pois somos humanos e nossa experiência é humana;”
Essa premissa é patética de duas formas. Primeiro, se por um lado é verdade que cada espécie possui sua própria experiência subjetiva de mundo, conforme suas características específicas e que por isso tal experiência não é a mesma da nossa (o biólogo alemão Jakob von Uexküll chama cada diferente experiência dessa de Umwelt), por outro lado é falso que sejamos completamente incapazes de conceber algo sobre tais Umwelten alheios. Aceitar a premissa (6A) requer fazer-se de bobo num nível extremo, a ponto de questionar, por exemplo, que não teríamos como saber qual a experiência de um cachorro ao se lhe atear fogo ou torturá-lo. O que será que significa quando ele tenta fugir tão logo perceba o que vai acontecer? Será que ele está se debatendo de prazer? Meu deus, que mistério insondável! Enquanto opositores de direitos animais se fingem(?) de idiotas, biólogos usam há pelo menos 100 anos o insight de Umwelt justamente para guiar uma melhor compreensão sobre o comportamento animal. Nas palavras do etólogo Frans de Waal,
“Alguns animais percebem luz ultravioleta, enquanto outros vivem num mundo de cheiros ou, como a toupeira-nariz-de-estrela, sentem seu caminho pelos subterrâneos. Alguns ocupam os galhos de um carvalho, outros vivem sob sua casca, enquanto uma raposa cava uma toca entre suas raízes. Cada um percebe a mesma árvore diferentemente. Humanos podem tentar imaginar o Umwelt de outros organismos. Sendo nós mesmos uma espécie altamente visual, compramos apps de celular que convertem imagens coloridas em imagens como vistas por aqueles sem visão de cores. Podemos andar vendados para simular o Umwelt de deficientes visuais. (...) Minha experiência mais memorável com um mundo alienígena foi ao criar gralhas, pequenos membros da família dos corvos. (...) Pensamos no voo como algo que pássaros fazem naturalmente, mas é na verdade uma habilidade que eles precisam aprender. Aterrissar é a parte mais difícil, e eu sempre tinha medo de que eles fossem se chocar contra algum carro em movimento. Comecei então a pensar como um pássaro, mapeando os ambientes em função de sua perfeição para pouso.(...) Quando Thomas Nagel, em 1974, questionou "Como é ser um morcego?" ele concluiu que nunca saberíamos.(...) Mas mesmo que não consigamos sentir o que eles sentem, nós ainda podemos tentar dar um passo além de nosso estreito Umwelt e aplicar nossa imaginação ao deles. De fato, Nagel não poderia ter escrito suas reflexões incisivas caso não tivesse ouvido falar da ecolocalização dos morcegos, que foi descoberta só porque cientistas tentaram imaginar como era ser um morcego e tiveram sucesso. É um dos triunfos da nossa espécie pensar fora de sua caixa de percepção direta.”
A segunda falha da premissa é que, a rigor, não temos como adentrar nem mesmo o Umwelt de outras pessoas. Considere o problema do Zumbi Filosófico. Ninguém tem como saber se outras pessoas experimentam o mundo da mesma forma, sequer se são seres conscientes: nós simplesmente supomos que sim, baseados nos comportamentos exibidos pelos outros. Esta dificuldade de conhecimento do outro traz desafios à ética, mas vai muito além da questão dos animais. Mas como é de costume entre os opositores de direitos animais, os argumentos e as dificuldades encontradas nunca são completamente considerados, só são levados em conta até a parte que convém —negar direitos a animais— e abandonados em seguida.

“6B) é preciso entender que as analogias são incompletas e imperfeitas, mas que tendem a completude do Ser no sentido ascendente e à incompletude do Ser no sentido descendente; 
7) logo, há um dever ético cuja manifestação institucional e coletiva é o direito, que emana do DEVER SER, denotando plena obediência à fonte transcendental das naturezas e obediência ao direito alheio por derivação e comunhão de aspectos essenciais comuns que levam o devedor ético à sua própria plenitude” 
Mera pregação sobre a perfeição da fonte transcendental (jeito chique de não escrever "Deus"), e a necessidade de obediência a ela, para poder emendar a próxima premissa. 

“8) [a]As prescrições do item 7 são violadas no momento em que extrapolamos o método analógico pra baixo na escala ontológica, ou seja, pros animais. [b]Embora possamos derivar um dever moral de evitar o sofrimento animal desnecessário, [c]disso não pode seguir um dever jurídico sem a degeneração da epistemologia ética; [d]pois não podemos antropomorfizar os animais. [e]Sabemos que a essência deles não é a mesma que a nossa, e [f]que todas nossas conjecturas a respeito da essência animal são necessariamente falhas pois [g]por mais que a neurociência avance, ela não contradiz a constatação de Aristóteles de que é impossível conhecer a essência alheia ao seu gênero. Sabemos contudo, que [h]os animais não possuem noções de direito e de reflexão moral, [i]estando aquém da humanidade no que tange aos deveres éticos.”
A impressão é que a essa altura Kogos perdeu a paciência em estruturar premissas passo-a-passo e decidiu jogar tudo amontoado numa só.

A premissa [a] traz a enfadonha insistência de que direitos animais seriam "extrapolação" ou "extensão" de direitos. Na verdade, os direitos animais são simplesmente a aplicação consistente e sem ressalvas arbitrárias do raciocínio Ético. Dizer que animais estão "para baixo" na escala ontológica é um jeito pedante de fugir do assunto: o ponto não é posição de alguém numa suposta escala ontológica, e sim se ele tem ou não o necessário para ser sujeito de direitos. A título de ilustração, considere um deficiente mental severo e permanente, por exemplo, e uma raça alienígena com mais perfeições do que nós. Sendo a escala ontológica um enfileiramento de seres pelas perfeições e capacidades que manifestam (antropomorficamente consideradas, é claro), este deficiente deve estar, por definição, ainda que acidentalmente, abaixo em tal scala naturae em relação a uma pessoa com suas faculdades mentais plenas, bem como os tais alienígenas estariam acima de nós. Ainda assim, mesmo estando abaixo, o deficiente possui direitos —bom, pelo menos eu defendo que possui—, e não seria só porque estaríamos abaixo dos tais alienígenas que perderíamos os nossos. Reafirmo: o ponto não é posição de alguém numa suposta escala ontológica, e sim se ele tem ou não o necessário para ser sujeito de direitos.

[b] e [c] são a relação principal desta premissa: de forma prática, Kogos está dizendo que [b]há um dever moral de evitar o sofrimento animal desnecessário mas que [c]ninguém pode ser punido por violar tal dever, pelos motivos de [d] até [i]. Vejamos estes motivos e voltemos a [c] ao fim:

[d]pois não podemos antropomorfizar os animais. 
[d] é um espantalho manjado. A defesa dos direitos dos animais não propõe "antropomorfizar animais", isto é, tratá-los como se fossem humanos, e sim tratá-los como animais; sendo o ponto exatamente que animais (na verdade, os incapazes em geral, incluindo incapazes humanos) já são dignos de tratamento ético enquanto tais mesmo.

[e]Sabemos que a essência deles não é a mesma que a nossa, e 
[f]que todas nossas conjecturas a respeito da essência animal são necessariamente falhas 
Os itens [e] e [f] são repetições da fracassada premissa (6A): devaneios sobre impossibilidades de conhecer sobre os animais. O item [f], aliás,  contradiz o item [e], pois se nossas conjecturas sobre a essência animal são "necessariamente falsas", simplesmente não podemos saber o que ele afirma em [e] sobre a essência animal não ser a nossa — talvez ela seja, e tudo que afirmamos em contrário sejam conjecturas "necessariamente falsas"...

[g]por mais que a neurociência avance, ela não contradiz a constatação de Aristóteles de que é impossível conhecer a essência alheia ao seu gênero. 
Quanto à suposta "constatação de Aristóteles pela impossibilidade de conhecer a essência alheia ao seu gênero", no item [g], ela está riscada porque os passos de tal constatação não foram fornecidos pelo Kogos e também não os encontrei procurando por conta própria; questionado, nem o próprio Kogos apontou quais seriam ou onde encontrá-los. De duas uma: ou Aristóteles nunca fez a tal constatação, ou pode até ter constatado mas, de qualquer forma, essa constatação está errada conforme a discussão da premissa (6A).

[h]os animais não possuem noções de direito e de reflexão moral,
O item [h] é a falácia de que direitos derivariam de se "ter noção" deles, ou de se ser capaz de "reflexão moral", no melhor estilo "se alguém não sabe que agressão é errado, então eu, que sei, posso fazer de conta que não sei e agredi-lo". Isso não é Ética, é só alguém dando uma de Joãozinho-Sem-Braço.

[i]estando aquém da humanidade no que tange aos deveres éticos
O item [i] completa a falácia iniciada em [h], tentando refutar um dever de A (o humano, capaz) em respeitar B (um incapaz) ao falar que B não é capaz de deveres. Na verdade, o que importa para caracterizar os direitos de B não é ele ser capaz de deveres (isto é, um agente moral), e sim ele ser um sujeito de direitos (isto é, um paciente moral). O erro aqui é tentar amarrar agência moral com paciência moral como se apenas agentes morais pudessem ser pacientes morais, o que é falso.

Então [d], [e], [f], [g], [h] e [i] foram dados como suporte à ideia em [c], mas todos eles são furados, então o que sobra da premissa (8)? Nada: continuamos sem motivo para acreditar que [c]não podemos punir quem viole o dever moral de evitar o sofrimento animal desnecessário reconhecido em [b].

"Segue do item 1 que estes deveres são plenos ou não são nada.
[a]Logo animais não estão na esfera do direito e [b]agir como se estivessem, como consequência do item 2, é uma negligência do direito e do dever ético para com seus sujeitos, os humanos."
Kogos tenta concluir recorrendo aos itens (1) e (2), mas já vimos no início que a premissa (2) está mal formulada, pra dizer o mínimo, e que uso pretendido dele para (1) é falacioso. Sobre [b], a rigor, a premissa (2) não tem relação alguma com "negligência do direito e do dever ético". Seria na verdade o item [b] de (3) "[b]relativizar tais direitos, tornando-os parciais e utilitários" o adequado para essa conclusão que ele deseja. Mas também já vimos que 3[b] é falso e também incorre em combinação falaciosa com (1), portanto mesmo fazendo esta correção o argumento dele continua errado.

Sobre [a]"Logo animais não estão na esfera do direito", esta era a conclusão que Kogos precisava embasar, mas uma vez que pelo menos as premissas (2), (3), (4), (6A) e (8) são grosseiramente erradas (enquanto (1), (5), (6B) e (7) são neutras, dando apenas suporte a estas), a conclusão não se sustenta. Afora as premissas mal estruturadas, a incoerência de rejeitar utilitarismo mas falar o tempo todo no coletivismo utilitário da "sobrevivência da espécie", e argumentos falsos, julgo que a principal falha do argumento apresentado por ele é ignorar a distinção entre agentes e pacientes morais. Não basta a ausência de agência moral: para que alguém seja excluído apropriadamente da esfera do direito, esse alguém precisa não se qualificar nem como agente, nem como paciente moral. Achar que basta alegar que alguém não é agente moral (isto é, que não tem capacidade de deveres) e com isso seu status de paciente moral também está descartado de brinde é um erro comum dos opositores dos direitos animais, no qual Kogos também incorre aqui.


CONCLUSÃO
A tentativa de silogismo de Paulo Kogos bastante apropriadamente para uma postagem disponível no “Instituto Rothbard Brasil”— é apenas mais um compilado de erros, ignorâncias e falácias rothbardianas já rebatidos no post Ética e direitos animais (1) - Crítica à abordagem jusnaturalista.

Ética e direitos animais (8) - Direitos, Deveres e Reciprocidade


Um dos argumentos mais comuns na discussão Ética é a ideia de que direitos vêm amarrados com deveres, ou, em outras palavras, que só pode ter direitos quem for capaz de deveres.

Um contra-exemplo imediato a essa ideia é o caso dos incapazes humanos, como bebês ou pessoas senis, as quais apesar de não serem capazes de deveres ainda são consideradas sujeitos de direito. A estratégia para compatibilizar a vinculação direitos-deveres com os direitos de tais incapazes, tentando manter ambos, seria falar da "potencialidade de deveres", por exemplo, mas no post passado discutimos por que estratégias como essa não se sustentam, e portanto não podem salvar a situação. Mas, como também vimos no post passado, meramente apontar que indivíduos x ou y seriam deixados de fora de direitos não é argumento suficiente para provar que eles tenham direitos. Por isso, nesse post vamos discutir qual a teoria correta para o caso.

De fato, existe uma relação entre direitos e deveres, e talvez ela é que esteja por trás da vinculação direitos-deveres tentada pelos anti-animais: realmente, "a todo direito correspondem deveres", Mas esta relação está descrita de forma incompleta. Quando dizemos que o indivíduo A tem por exemplo direito de propriedade, isso significa que esse direito constitui um dever aos outros de não invadirem a propriedade de A. Assim a formulação correta é que "a todo direito do indivíduo A correspondem deveres aos indivíduos B, C, D..." — o que absolutamente não equivale à ideia pretendida de que “A só tem direitos se o próprio A for capaz de deveres”, nem pode fundamentá-la.

Os conceitos de "direito" e "dever" se aplicam sobre um mesmo fenômeno mas a posições distintas na relação. Quando cogitamos "direitos", estamos falando daquele que está sujeito à ação de alguém, aquele que é a vítima, que tem um interesse legítimo seu violado, aquele que é o paciente da ação. Já quando falamos em "dever" estamos olhando para aquele que promove a ação, o que viola interesses alheios, o agente. Desta forma, os atributos relevantes para cada posição são distintos e independentes.

Para que alguém se caracterize como agente moral, dado que só pode haver moralidade onde há escolha, é preciso avaliar se ele possui atributos relacionados à possibilidade de agir com impacto moral e de escolha nesse agir. Aqui sim é relevante a consideração de capacidades como "discernimento moral", "livre escolha", "racionalidade" — enfim o conceito de "capacidade jurídica" em geral. A avaliação destas capacidades é importante para a reprovabilidade da ação: é reprovável aquele que tinha discernimento e alternativas e ainda assim optou pela ação imoral.

Mas para que alguém se caracterize como paciente moral obviamente não podem ser as capacidades da agência moral que devam ser observadas, pois o juízo de reprovação é sobre o agente, não sobre o paciente. Ora, a posição do paciente moral é enquanto alvo, vítima da ação: o que cabe ser observado portanto é sua possibilidade de sofrer as consequências de ações morais, de ser afetado por elas. 

Querer exigir racionalidade até para caracterizar alguém como paciente moral é como dizer que só pode ser passageiro de um veículo quem tiver capacidade de dirigi-lo também.


A possibilidade de ser vítima de uma ação independe das capacidades de agência moral. Um bebê, por exemplo, não é capaz de discernimento moral, de fazer pactos, nem de escrever tratados filosóficos sobre direitos, mas é capaz de sofrer violações, e é só isso que importa para caracterizá-lo, apesar de não ser um agente moral, ainda assim como sujeito de direitos. Vemos portanto que não cabe vinculação entre agência moral e paciência moral, são atributos independentes. podendo haver dessa forma:
  • [a]seres que são agentes e pacientes morais (humanos capazes);
  • [b]seres que não são nem agentes nem pacientes (objetos inanimados);
  • [c]seres que são pacientes sem serem agentes (incapazes, sejam eles humanos ou animais); 
  • e até hipoteticamente [d]seres que sejam agentes sem serem pacientes (como seria o caso de um ser que fosse capaz de interferir em nossas vidas mas que fosse inatingível ou inviolável em seus interesses: tal ser exemplificaria um agente moral que não é paciente moral).

Assim, quando A age sobre B, devemos avaliar em A a agência moral e em B a paciência moral, não vice-versa e, mais importante, não a agência moral em ambos. Fazer isso nos levaria ao estranho raciocínio em que a pena de A por agredir B depende não da reprovabilidade da conduta agressiva de A, e sim se a vítima B é passível de punição ou não.

MAS E A RECIPROCIDADE?
Se por um lado é incabível a ideia de definir a pena do agressor a partir da possibilidade da vítima em ser punível, por outro lado a alternativa proposta aqui também não violaria um princípio ético importante: o da reciprocidade? Pois o que estamos dizendo aqui é, literalmente, que se A agride B e encontramos a agência moral em A ele deve ser punido; mas se B agride A e não encontramos a agência moral em B ele não deve ser punido. Isto é, dada uma mesma ação, o capaz é punido por executá-la contra o incapaz, mas o incapaz não é punido por executá-la contra o capaz. Não estaríamos então diante de uma situação claramente assimétrica e portanto injusta? Os incapazes não estariam numa classe privilegiada?

Certamente há uma assimetria, mas apenas porque a condição dos envolvidos é assimétrica. A partir do conceito de justiça como tratar os iguais de forma igual, e também os desiguais de forma desigual, na medida de sua desigualdade, podemos entender que não há injustiça alguma no caso. Injusto seria (a)condenar os incapazes como se capazes fossem, ou (b)deixar de condenar os capazes como se incapazes fossem. O correto é dar a cada um o tratamento respectivo de acordo com sua condição. Sendo a condição dos incapazes a de serem pacientes morais e não serem agentes morais, o tratamento devido a eles é a proteção, enquanto pacientes, e a ausência de reprovabilidade, enquanto não-agentes morais.

Mas então na prática isso significa que A não pode agredir B, mas B pode agredir A à vontade? Na verdade não. Eticamente falando, nem A nem B podem se agredir. Agressão é errada de forma universal, para ambos. A diferença é apenas do ponto de vista da punição, do Direito Penal. O indivíduo A faz jus a penas propriamente ditas porque é capaz, era exigível dele observar deveres, e a pena pode desempenhar sobre ele suas funções. B não faz jus porque não é exigível dele a observância de deveres, e a pena simplesmente não teria efeitos sobre ele — mas ainda assim isso não significa que B pode fazer o que quiser: ainda é lícito exercer legítima defesa contra B, e adotar medidas como afastá-lo do convívio para sua própria segurança e dos demais. Nada disso significa, note-se, uma autorização para ir lá e agredir B em primeiro lugar e independente de qualquer coisa nem na ausência de seus direitos.

Esta é a teoria correta sobre direitos e deveres, e que não incorre em falhas lógicas, arbitrariedades nem ampliações indevidas.

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Confira a lista completa, com mais artigos sobre o tema Ética e direitos dos animais.

Ética e direitos animais (7) - Os incapazes humanos

Pelo sono do filhote e pela cara da criança, o fotógrafo deve ter dito "classe ontológica" na hora da foto
Durante as discussões Éticas é comum recorrermos à comparação de animais, enquanto incapazes, com os humanos também incapazes. A estrutura geralmente é a seguinte, propondo a implicação de que:
"Se o argumento x é verdadeiro, então humanos incapazes também não têm direitos".
Exemplos de humanos incapazes são bebês, deficientes mentais e idosos senis, enfim, qualquer ser humano que sofra de uma incapacidade, temporária ou permanente, parcial ou total. Esta incapacidade seria em relação à posse ou desempenho de um atributo que alegadamente torna alguém sujeito de direitos. Por exemplo, o argumento x poderia ser que "argumentar dá direitos" e a abordagem seria dizer "mas deficientes mentais, que não argumentam, não teriam direitos então". O objetivo, naturalmente, é que o proponente do argumento x, por rejeitar a implicação "humanos incapazes não têm direitos", volte atrás no argumento x que tem essa implicação.

Neste post estudaremos esta abordagem, e principalmente os argumentos usados para tentar desfazer tal implicação.

Em primeiro lugar, essa implicação por si mesma não leva o argumento x a cair numa contradição, absurdo lógico, nem impossibilidade; essa abordagem funciona apenas à medida que a maior parte das pessoas toma os direitos dos incapazes humanos como pressuposto. Por isso, aquele que apontar essa implicação como se fosse um contraponto definitivo ao argumento x estará incorrendo numa falácia: poderia muito bem ser o caso de que o tal argumento x é verdadeiro, incapazes humanos infelizmente não tenham direitos mesmo, e fim da história. O apontamento de tal implicação, portanto, deve ser usado apenas como um sinal de alerta a partir do ponto em que os direitos dos incapazes estejam bem fundamentados, e não como um contra-argumento em si mesmo.

O proponente do argumento x, por outro lado, se esforçará para tentar quebrar a implicação. Isto é, ele tentará permanecer com o argumento x e arrumar algum motivo para que ele não implique na perda de direitos de incapazes humanos — apenas na perda de direitos de quem ele não quer que os tenha, geralmente os animais.

A seguir, analisaremos algumas destas propostas para quebrar a implicação.

INDIGNAÇÃO COM A COMPARAÇÃO
Esta é comum não só na discussão Ética, mas em qualquer caso em que se faça uma comparação desfavorável ao interesse de alguém. Indignado, ou manifestando desdém, o sujeito dirá que é um absurdo fazer esta comparação porque obviamente isto é diferente daquilo — no nosso caso, "obviamente humanos são diferentes de animais".

O problema é que não adianta meramente apontar alguma diferença para invalidar uma comparação, porque qualquer comparação necessariamente se dará entre diferentes; se fossem iguais não seria comparação e sim tautologia. A questão para recusar comparações, portanto, não é dar chilique por haver alguma diferença, e sim justificar por que ela é ou não importante.

(Evitarei escrever uma comparação aqui reforçando o ponto deste item para evitar que o indignado com comparações entre em loop, ok?)

APELO AO FUTURO - POTENCIAL
A proposta aqui seria, por exemplo, que um indivíduo não cumpre, em ato, o argumento x, mas é um cumpridor em potencial. Primeiramente, tal argumento só serve para limpar a barra de bebês e algumas condições temporárias ou supostamente curáveis de deficiência mental; idosos senis e deficientes mentais permanentes, que não dispõem portanto de potencial nenhum, permaneceriam descartados. Agora, do que importa ser um potencial alguma coisa? Potencialidade significa que o sujeito não é capaz agora, mas pode vir a ser no futuro. Ora, se a premissa é

(P1) Só tem direitos quem é capaz de x;
e (P2-a) fulano não é capaz de x;
a conclusão só pode ser (C-a) fulano não tem direitos, 

Se (P2-b) fulano não é capaz agora, mas tem o potencial de vir a ser futuro;
a conclusão disso é (C-b) fulano não tem direito agora, mas tem potencial de vir a ter futuro.

Se tem direito quem tem capacidade, quem tem capacidade potencial tem direitos apenas em potencial também, e não a estranha (C')fulano não é capaz agora mas pode vir a ser no futuro então já vamos tratá-lo no presente com se futuro fosse.

APELO AO PASSADO
Na tentativa de salvar os idosos senis e aqueles que tenham adquirido suas incapacidades posteriormente, pode-se propor também que a capacidade uma vez possuída geraria direitos daí em diante, mesmo com a sua cessação posterior. Novamente, os deficientes mentais permanentes, que nunca foram nem nunca deixarão de sê-lo, continuam de fora do argumento.

De qualquer forma, este apelo recorre à mesma trapaça temporal do anterior:
Se (P1) Só tem direitos quem é capaz de x;
(P2) fulano não é mais capaz de x;
a conclusão só pode ser (C) fulano não tem mais direitos.

e não a estranha (C')fulano não é capaz agora mas já foi no passado e vamos fazer de conta que ele é o que não é mais então.

Apesar disso, dentre as 3 propostas analisadas neste post esta é a menos ruim, pois existe pelo menos um aspecto no qual ela pode fazer algum sentido. A ideia de que as manifestações de vontade gerem implicações futuras é na verdade bastante razoável. Porém, se direitos são criados pelas deliberações passadas, é de se argumentar que a cobertura de direitos de tal indivíduo só ocorreria à medida exata das definições que ele tenha deixado expressamente — rezemos para que ele não tenha esquecido de explicitar nada importante. Mas em todo o caso fica o alerta de que esta proposta continua deixando de fora aqueles que não tiveram um momento de capacidade, como é notavelmente o caso de bebês e até mesmo crianças, além dos deficientes mentais que nunca tenham passado por períodos sem deficiência.

APELO AO COLETIVO - CLASSE ONTOLÓGICA
Se por um lado esta proposta é a mais ambiciosa porque teria o poder de finalmente salvar todos os incapazes humanos —e apenas eles!—, por outro lado é a que falha mais miseravelmente em cumprir o objetivo.

O argumento é basicamente que todos estes incapazes humanos teriam direitos ...por serem humanos. Ou dito de forma mais pedante, porque eles "pertenceriam à mesma classe ontológica".

Bonito, não? Pena que "classe ontológica" é um termo que, no contexto que estamos discutindo, quer dizer
Nada. Nadinha. Rigorosamente nada.

Vejamos. A ontologia estuda as características do ser, o que tem na essência de alguma coisa que a diferencia de outras e a põe na mesma categoria de algumas. Por que esses objetos aqui nós consideramos pertencentes à classe "caderno" e esses aqui nós julgamos "agenda"?

Uma área interessantíssima da filosofia.

Só que TUDO pertence a uma classe ontológica. Dizer que alguma coisa é assim ou assado "por causa da classe ontológica" é simplesmente dizer "é assim porque ele pertence a uma classe que tem uma característica que a diferencia das outras" — mas isso pode ser dito de QUALQUER COISA! Ontologicamente, TUDO tem "uma característica que a diferencia das outras".

Que característica é essa? Por que ela é relevante para o que se está sendo discutido? Esse é o ponto que precisa ser demonstrado, e que o mero balbuciar da expressão "pertence à classe ontológica" é incapaz de fazê-lo.

Além do mais, existe um coletivismo sem-vergonha aí. O caso dos incapazes é exatamente que eles não possuem uma característica comum à classe ontológica — uma característica, aliás, que foi proposta como a essencial para se ter direitos. (O caráter arbitrário do raciocínio é evidente, porque humanos teriam direito APESAR de não possuírem tal característica, já os animais não teriam POR CAUSA de não possuírem tal característica).

Pois bem, eles não possuem essa característica essencial, mas de alguma forma devemos tratá-los como se a tivessem, só porque uma grande quantidade de outros indivíduos da classe têm tal característica. É a velha história: "fulano não é racional, mas devemos agir como se ele fosse porque outros fulanos que compartilham genética com ele são". Como funciona essa transmissão coletiva? Só Deus sabe e nenhum coletivista jamais conseguiu explicar.

Note-se também que o coletivismo em questão recorre a um recorte da classe ontológica apenas num nível conveniente. Os seres não pertencem a apenas uma classe ontológica, há classes acima das quais ele participa, e há níveis abaixo, participando ele de alguns e não de outros. Todo pertencente, por exemplo, à classe "humano" é também um membro da classe "animal" e também da "seres vivos", bem como pode ser um integrante de classes subordinadas ("abaixo") como "americano" ou "negro" e tantas outras subdivisões. Uma delas, inclusive, é justamente a classe "capazes de argumentar", ou "de raciocinar", ou seja lá o que esteja sendo alegado como o requisito da vez. A rigor, se direitos são apenas para os capazes esta é a classe ontológica que dispõe de tais direitos; o argumento do coletivista ontológico é subir algum(ns) nível(is) acima nas classes e estender os direitos a uma classe específica de seu interesse, os humanos, o que obviamente é mera arbitrariedade disfarçada com terminologia chique.

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Confira a lista completa de artigos sobre Ética e direitos animais.

Falácia do Porta-Voz Transparente


Na verdade não sei se é exatamente uma "falácia" no sentido mais estrito, mas trata-se de um erro de raciocínio, ou de um modo de falar que induz a tal erro ou o camufla.

Tal falácia ocorre quando alguém, ao manifestar uma ideia, omite os intermediários envolvidos. O falante omite a si mesmo e a outras camadas de sujeitos envolvidos no processo, e suas consequentes particularidades, transmitindo a informação de forma direta, como se ela fosse um dado puro — daí o nome, ele torna todos os intermediários (porta-vozes) transparentes. Exemplos:

1- declarar "esta doença não tem cura", quando na verdade o caso é "Eu não conheço nenhum trabalho de alguém que tenha relatado observar um meio de cura para essa doença";

2- dizer "você está negando os fatos/a Ciência/a História etc" quando na verdade temos "você está negando o que eu digo que é conforme os fatos/Ciência/História". *

3- expressar-se simplesmente como "na lei divina matar é errado", quando na verdade a descrição mais completa do caso seria "Eu li alguém que disse que Deus teria dito que matar é errado";

(Esta falácia ocorre praticamente sempre que se lida com teístas. Eles sempre se expressam referenciando diretamente Deus ("Deus diz que...", "Para Deus...") mas na verdade a construção correta é "eu acho que Deus acha que..." ou, em muitos casos, "estou dizendo pra vocês o que eu entendi ao ler um livro no qual alguém escreveu que deus disse que..." — isso supondo a fala de um padre: o fiel presente à missa ainda teria que acrescentar "estou dizendo pra vocês o que eu entendi do que o padre disse que ele entendeu ao ler um livro no qual alguém escreveu que deus disse que...").

4- expressar-se como "sou uma autoridade na obra de Michel Foucault", quando na verdade a descrição completa é "Tenho um diploma fornecido por pessoas dizendo que elas entendem que eu entendi Foucault da mesma forma que elas entenderam (e elas entendem que entenderam conforme Foucault queria ser entendido)";

Suponho que por brevidade na comunicação este tipo de construção continuará sendo omitida e em muitos casos isso não interferirá na discussão, mas é importante ter em mente essa questão para identificar os casos em que ela é relevante.

Ainda, há sempre um primeiro nível de porta-voz omitido: a rigor, toda asserção poderia começar com "eu acredito que" ("Choveu ontem" na verdade é "Eu acredito que choveu ontem", por exemplo) mas eu acredito que seja razoável manter tal omissão e dá-la como implícita por padrão, reservando esse tipo de explicitação apenas para quando desejarmos ressaltar um estado de dúvida ou de pessoalidade naquilo que estamos transmitindo.

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 *Relacionado também à Falácia de Apelo a Autoridade Abstrata.

Pacto da Mediocridade: como criar guerras subterrâneas com leis trabalhistas


O relato no post Pacto de Mediocridade: a guerra subterrânea dos trabalhadores da Livraria Cultura, tem tudo para se tornar um hit entre os defensores das leis trabalhistas: nesta primeira de duas partes, a reportagem narra uma situação entre 2013 e 2016 em que funcionários se viram submetidos a um patrão explorador e escroto. De acordo com a narrativa, o problema começa quando, frente à já conhecida crise no setor de livrarias físicas e diante da aquisição da livraria por um novo proprietário, é feito um corte na quantidade de funcionários da loja. Isso faz com que os funcionários restantes fiquem sobrecarregados até que a situação como um todo se torna insustentável a ponto de, após terem que trabalhar uma madrugada inteira para tentar colocar o serviço em dia, o patrão os reúne para uma série de humilhações, esporros e o convite de que quem não quisesse trabalhar lá mais seria só passar no RH que o patrão "faria questão de mandá-los embora pagando todos os direitos certinho". Porém, todos os funcionários da loja acabaram realmente indo ao RH para serem demitidos, contrariando a expectativa do patrão, que então teria voltado atrás em sua proposta/blefe, alegando que só mandaria os empregados embora no final do ano. Isso iniciou uma guerra velada em que a livraria passou a forçar motivos para demitir os funcionários por justa causa antes do prazo dado pelo proprietário e a tornar a vida deles um inferno para que acabassem se demitindo por conta própria antes do prazo.

Para os defensores das leis trabalhistas está aí um prato cheio para refutar as ideias de uma economia de livre mercado: como os empresários não são bonzinhos, precisamos de leis trabalhistas fortes para proteger a classe trabalhadora de abusos com o relatado nessa reportagem!

Em primeiro lugar, nenhum defensor do livre mercado acredita que empresários sejam bonzinhos. É a esquerda que enxerga o mundo dividido entre empregadores malvados versus proletários coitadinhos e sempre bem-intencionados. Os defensores da liberdade sabem muito sabem que há canalhas dentre empregadores e empregados, assim como há pessoas de boa-fé em ambos os lados.

Agora, indo ao ponto mais importante, o fato de existirem canalhas significa que leis trabalhistas seriam necessárias e benéficas? A resposta é não.

Os defensores das leis trabalhistas parecem não perceber que na verdade esta história ocorre em um cenário em que JÁ HÁ tais leis trabalhistas. Pior: eles falham em perceber que são exatamente estas leis que criam o incentivo para a situação lamentável ter se estabelecido: "ser mandado embora" em vez de "pedir para sair" só faz diferença à medida que parte do dinheiro pago pelo empregador ao empregado é retido compulsoriamente pelo governo, que só devolve esse valor (em termos de multas e indenizações) caso seja o empregador que decida encerrar a relação. Deixe-me reforçar esse ponto. Leis trabalhistas mais fortes não podem ser a solução para o problema, porque já são a CAUSA da situação lamentável denunciada pela reportagem. É o mecanismo perverso da lei trabalhista, sob as nobres intenções de "proteger" e "dar estabilidade ao empregado" que cria o incentivo para que os empregados, em vez de darem uma banana para o empregador tirano quando bem entenderem, se vejam incentivados a permanecer num ambiente de trabalho tóxico além do que permaneceriam se não houvesse tais incentivos A situação de guerra entre empregados e empregadores é exatamente a consequência das leis trabalhistas: empregados procurando trabalhar o mínimo possível para serem demitidos, sem dar margem à justa causa e terem acesso a mais dinheiro, versus empresas fazendo de tudo para piorar a situação dos trabalhadores para que eles acabem cedendo e pedindo demissão, e o empregador economize as indenizações. É o típico jogo em que "quem ganhar e quem perder, vai todo mundo perder", como diria a filósofa Dilma Rousseff.

Num ambiente de liberdade, as partes só têm incentivo para permanecer na relação de trabalho enquanto ela for benéfica para ambas. Apenas a liberdade de saída a qualquer tempo — e não regras inventadas por políticos— pode promover relações em que ambas as partes são incentivadas a dar motivos para a outra não querer sair da relação.

A desnecessidade do livre-arbítrio


No post anterior, Praxeologia: o algoz do livre-arbítrio, falei sobre como a praxeologia prova a inexistência do livre-arbítrio, mostrando que, nas palavras de Mises, a vontade não é “livre” no sentido metafísico do termo. A herança e o meio ambiente moldam as ações do ser humano. Sugerem-lhe tanto os fins como os meios. Mas, uma vez tirado o livre-arbítrio do caminho, como fica a responsabilização das pessoas? A ética e o direito não estão baseadas na ideia de um livre-arbítrio? Elas não ruiriam sem ele? A resposta é "não" e eis o porquê:

Eu não sei se a ideia de livre-arbítrio se originou com a teologia, mas arrisco afirmar que, pelo menos atualmente, esta é a única área que realmente requer a existência desse conceito. Isso fica claro quando imaginamos um julgamento divino. Deus diz 
Bem, Sr. Fulano, estou vendo aqui que o senhor foi um estuprador de criancinhas, tisc tisc, então o senhor pode estar se encaminhando à porta da esquerda onde o senhor poderá estar fazendo o seu check-in no inferno, tenha um bom dia. PRÓÓXIM...
Mas —brada o Fulano—  eu só estuprei criancinhas porque tinha um desejo disso! Se o senhor não queria que criancinhas fossem estupradas, por que me criou com esse desejo e obtendo estados de maior satisfação ao satisfazê-lo?
na-na-ni-na-não —responde Deus— era pra você ter tido força de vontade e resistido a esse desejo! Demonstrado virtude e essas coisas, sacou?
espera aí, mas também não fui eu quem escolhi quanta força de vontade eu teria. Eu sou tão fraco e sem virtude quanto VOCÊ me fez!
E daí em diante. Então é fácil perceber que em algum momento nós vamos precisar de algo para quebrar o vínculo causal entre criador e criatura nesse julgamento — caso contrário o Criador também seria culpado, mesmo que indiretamente, pelos pecados das criaturas e após o julgamento, se ele é realmente justo, deveria pegar a si próprio pelo colarinho também e se conduzir ao inferno junto com o pecador. Mas então não é a ética, tribunais, nem a justiça que requerem livre-arbítrio: é apenas o contexto de um julgamento entre criador e criatura que requer tal conceito. Fora disso não há qualquer razão para o livre-arbítrio — apesar de muitos que já abandonaram fundamentações no divino para seus raciocínios não terem percebido isso e continuarem carregando esse conceito por aí sem necessidade.
No mundo real os julgamentos ocorrem apenas entre criaturas mesmo. "Culpa", "escolha" e "responsabilidade" aqui assumem sentidos práticos. Um Juiz não precisa evocar livre-arbítrio para determinar que um estuprador seja afastado do convívio social, porque o máximo que o estuprador poderia provar ao falar sobre determinismo é que os estupros não são culpa dele e sim de elementos da natureza que ele não controla, mas isso não faz diferença nenhuma desde que ele não está sendo afastado da sociedade porque "é mau" e sim porque causa danos ao resto dos indivíduos. Ele é culpado pelo estupro porque é ele, aquele corpo específico, o causador das agressões em análise. É aquele corpo o culpado pelos estupros no sentido de que encarcerar aquele corpo em particular é que fará cessar os estupros, e não algum outro corpo qualquer.

Quando falamos de "escolha", interessa à justiça avaliar se o cérebro humano executa alguma ação deliberadamente (nada de "livremente") ou se ela é processada em nível subconsciente, isto é, se ela está sujeita a ser influenciada por inputs externos ou se o cérebro do sujeito vai continuar fazendo o que faz independentemente dos inputs porque simplesmente eles não são levados em consideração nesses processos.

Quando é o caso de que inputs são levados em consideração, a pena se justifica em suas funções de prevenção geral e especial. Na prevenção geral, espera-se que outros indivíduos levarão em conta a insatisfação causada pela punição prometida e aplicada para não praticarem a Ação criminosa; já a prevenção especial dirige-se a dissuadir a reincidência do próprio criminoso, que não deseja sofrer nova insatisfação.

Quando é o caso de que inputs não são levados em consideração, se o sujeito perturba a ordem social e não há como curar seu comportamento, com medicações, tratamentos e etc. ele ainda vai preso do mesmo jeito. Muda-se apenas o nome —"internação compulsória" em vez de "prisão", ou similar.

Um outro elemento a se levar em consideração é a probabilidade de reincidência. Em certos casos um indivíduo pode ter cometido um crime, como matar alguém, ou roubar um carro, mas fez isso por um motivo que não ameaça a ordem social ou até mesmo a preserva: ele matou um criminoso, ele roubou o carro para levar uma grávida ao hospital. Nesses casos, como a reincidência é improvável ou mesmo não danosa, a pena tende a ser reduzida ou até eliminada completamente.

Que falta fez o conceito de livre-arbítrio em qualquer dos parágrafos acima?
Convido você a deixar nos comentários alguma situação relacionada à Ética em que você acredite que o livre-arbítrio é essencial. Talvez haja, quem sabe. Mas enquanto não aparece, deixemos o livre-arbítrio restrito apenas ao contexto de onde ele nunca devia ter saído: as ladainhas dos padres.