Ética e direitos animais - Índice


Nesta série de artigos investigaremos as teorias libertárias mais usadas para negar direitos a animais, verificando se elas realmente se sustentam.

Uma analise do argumento jusnaturalista em geral, com o capítulo 21 do livro "A Ética da Liberdade" do Rothbard respondido ponto a ponto.

A demonstração de que a exigência de "capacidade argumentativa" para titularidade de direitos é infundada, tanto pela teoria da Ética Argumentativa, de Hans-Hermann Hoppe, quanto pelo argumento finalístico da propriedade (como defendido por Alexandre Porto).

Relacionado: Hans-Hermann Hoppe vs Luiz Fabrette - Sobre Ética Argumentativa e não-argumentadores


Complementando o post anterior, investigamos alguns conceitos como o de Ação, Uso e Controle Direto, que nos levam a efetivamente propor um argumento em prol dos direitos dos animais, demonstrando que se a Ética Argumentativa é válida, então a não-agressão a animais é obrigatória. 

Ética e direitos animais (4) - Resposta a Molyneux
Uma resposta aos argumentos feitos por Stefan Molyneux, na sua teoria do Universally Preferable Behaviour (UPB). Versão em inglês: Ethics and animal rights (4) - Response to Molyneux

Ética e direitos animais (5) - A premisa sobrevivencialista
Ponderações sobre a premissa de que a ética teria algum compromisso com a sobrevivência humana, e suas implicações.

Ética e direitos animais (6) - Contratualismo
Comentando a ideia de que, se direitos são fruto de um pacto, então eles só se aplicariam àqueles capazes de fazer pactos. Traz também uma comparação entre a visão de uma ética subjetiva, como a contratualista, e uma visão objetiva.

Ética e direitos animais (7) - Os incapazes humanos
O caso dos argumentos que também implicam na inexistência de direitos de incapazes humanos, e a análise dos métodos usados para tentar desfazer essa implicação.

Ética e direitos animais (8) - Direitos, Deveres e Reciprocidade
Uma análise da ideia de que apenas seres capazes de deveres têm direitos e a apresentação de uma espistemologia Ética correta com base nos conceitos de agente moral e paciente moral.

Ética e direitos animais (9) - A "prova" de Paulo Kogos
Avaliação do argumento proposto por Kogos para provar a inexistência de direitos animais tanto num mundo sem ética quanto no de uma ética transcendental.

Respostas a todas as demais questões, que não sejam relativas à esfera da Ética, levantadas por libertários na discussão dos direitos animais.

Ética e direitos animais (final) - Questões Gerais


Depois de demonstrados os problemas das tentativas de se negar direitos a animais com base no jusnaturalismo de Rothbard e na Ética Argumentativa de Hoppe, surgem em geral algumas alegações mais práticas — é o apelo final: desarmada no apriorismo, a pessoa muda então para o consequencialismo ético, tentando mostrar que seria complicado ou difícil para nós se animais tiverem direitos; começa a se preocupar com nutrição, aspectos econômicos ou, em casos piores, há pessoas que começam até mesmo a boa e velha apologia à agressão, dizendo que vão continuar agredindo animais mesmo e eles que se danem.

Esse post será atualizado constantemente com essas questões alheias à Ética conforme elas forem surgindo. Você pode deixar a sua nos comentários.

1. Sobre a punição - ou "então vamos ter que mandar para a cadeia leões que comem zebras!"
O reconhecimento dos direitos dos animais não traz qualquer obrigação de julgar e punir crimes praticados por animais; na verdade, não existe obrigação ética de punir nem sequer os crimes praticados ou sofridos por humanos (caso houvesse, já estaríamos sendo anti-éticos simplesmente por estarmos aqui discutindo esse assunto em vez de estarmos caçando todos os criminosos que existem no mundo nesse instante).

Isso porque punição é uma questão relativa ao Direito, não à Ética. Não somos obrigados a empenhar todos os nossos recursos numa busca incansável para identificar, caçar e punir o roubo, por exemplo, de uma simples balinha — nem por isso declaramos que os direitos de propriedade deixam de existir ou que não houve violação do direito do dono da balinha. É claro que houve. Da mesma forma que quando um leão mata uma zebra isso evidentemente é uma agressão e uma violação à vida da zebra. Reconhecer isso, entretanto, não implica em qualquer obrigação de punição e a inconveniência ou inutilidade de punir certas violações de direitos não torna os direitos violados inexistentes.

Ainda, digamos que o ladrão da balinha do nosso exemplo anterior fosse uma criança, ou um doido, ou qualquer outro na categoria dos civilmente incapazes: o fato de que provavelmente não faria sentido mandá-los para a cadeia não significa que se torna ético para nós ir lá e escravizar e matar esses indivíduos incapazes. É a mesma coisa em relação aos animais. Não é só porque a punição não se aplica a alguém que se torna eticamente correto iniciar agressão contra esse alguém.

2. Sobre a reciprocidade - ou "então eu não posso matar o leão mas ele pode me matar!"
Essa até já foi comentada no primeiro post da série. A agressão do leão contra você é tão injustificável, e pelo mesmo motivo, que a sua contra ele. Sua defesa em relação a ele será simplesmente legítima defesa.

3. "Eu tenho direito de comer o que quiser"
Comer carne pode até ser um direito, mas matar alguém que não quer ser morto como você defende que se faça com animais para obter a carne não é.

4. "Animais são recurso!"
Você também é. Recurso é qualquer meio material ou imaterial capaz de satisfazer, diretamente ou após trabalhado, necessidades de outros. Humanos são capazes de satisfazer necessidades alheias. É exatamente por isso que ocorre escravidão, por exemplo. Ou mesmo canibalismo. A questão, portanto, não é se alguém é ou não recurso —todos somos—, e sim que você acha que é antiético humanos serem usados como recursos. Ótimo. E o motivo pelo qual é antiético para os humanos é o mesmo pelo qual continua antiético para os animais: a norma de que o primeiro usuário seja o dono do corpo é inegável, e eles é que são os respectivos usuários, não você.

5. "Animais são incapazes de respeitar a ética!"
Isso é simplesmente falso. Muitos animais passam suas vidas tranquilamente, sem iniciar agressão.

5a. "Mas não é respeito consciente...."
Esse estado subjetivo de "respeito consciente" não é relevante nem sequer entre humanos. Se uma pessoa cruza com você pela rua e não te rouba, não importa se ela se absteve de te roubar graças a uma "intrincada reflexão moral da razão pura que a levou a um profundo respeito pela regra da propriedade", ou se ela não te roubou apenas porque tinha medo de você, ou porque você não tinha nada que ela queria ou porque isso simplesmente nem passou pela cabeça dela. Tudo que importa é que, enquanto algum ser não te agride, ele é um não-agressor. E iniciação de agressão contra ele é injustificável.

*Considerações sobre as intenções e pensamentos do agente só terão alguma importância na dosagem da pena, pois indicarão a pré-disposição do agente em repetir ou não o delito. Novamente, questão de Direito Penal, não de Ética.

6. "Mas a ética é aplicável só a humanos"
Mesmo que se alegue que "a ética é aplicável só a humanos",  uma disposição do tipo "é errado agredir animais" ainda está propondo algo "aplicável a humanos", já que estamos dizendo precisamente aos humanos mesmo que eles não deveriam fazer tal coisa.

Porém, a ética não se propõe a dar enunciados "só a humanos", e sim enunciados objetivos e universais. Pensar que a ética só se aplica aos humanos é tão tolo quanto pensar que a matemática só aplica a nós, como se tirar 2 ovos de um pássaro que pôs 3 deixasse de ser uma subtração só porque o pássaro não sabe fazer contas.

7. "Fale para o leão não comer a zebra!" / "Te desafio a ir debater direitos com animais!"
Você pode falar pra um leão não comer uma zebra, assim como pode falar pra um bandido não assaltar uma vítima, ou um político não roubar seu dinheiro. O fato de eles não darem ouvido ao que você falou não significa que o que fizerem estará certo, ou que as vítimas não estejam sofrendo agressões, nem que você passe a estar autorizado a agredir não-agressores.

Ainda, direitos não são produzidos via debate, nem são válidos apenas para as partes envolvidas no debate, portanto a incapacidade de alguém em ser parte em debates não o exclui de direitos. Desafio irrelevante. (Mais sobre direitos e debates no post Ética e direitos animais (2) - Crítica à conclusão hoppeana).

8. "Animais não exercem o direito de autopropriedade"
O direito à autopropriedade declara que o primeiro usuário de um recurso (como o corpo) seja o dono dele. Ser dono significa poder tomar as decisões sobre o que fazer com aquele bem. Coisas como mover aquele corpo para frente ou para trás, usá-lo para pegar algo, etc etc. Animais conseguem exercer todos estes controles diretos sobre os respectivos corpos. Sendo a norma da autopropriedade uma norma de validade inegável, então é inegável que animais, que são os primeiros usuários de seus corpos, são autoproprietários. Eles exercem suas autopropriedades perfeitamente e continuarão exercendo enquanto não forem agredidos  exatamente como o resto de nós.

9. "A solução é tornar os animais propriedade de pessoas, assim eles serão protegidos."
Tornar algo propriedade não é garantia de nada, pois o dono pode tanto cuidar daquilo que é seu quanto destruir à vontade.

9a. "Mas a partir do momento que o animal se torna propriedade de alguém esse alguém tem todos os incentivos de cuidar desse animal. Um exemplo disso é o Zimbábue que privatizou os elefantes que estavam em extinção por causa da caça excessiva e agora eles não estão mais em extinção."
Os elefantes não foram exatamente protegidos, mas sim gerenciados de forma a que mais deles continuassem existindo para que fossem caçados e abatidos depois. De fato, os donos possuem incentivos de cuidar de algo, mas só o necessário para que esse algo satisfaça as necessidades do dono. Em caso de animais domésticos, em que a necessidade é de ter um "membro da família", então os bichos recebem de fato vários mimos. Mas não necessariamente. Se a necessidade do dono for subjugar um ser fraco, então o bichinho será maltratado. Os donos de escravos "cuidavam" de suas pessoas apenas o suficiente para que eles trabalhassem, por exemplo. Da mesma forma, donos de frangos "cuidam" deles apenas o suficiente para que eles forneçam carne, o que significa basicamente mantê-los presos sem sequer espaço para locomoção, arrancar-lhes os bicos e enfiar-lhes comida até não aguentarem mais.

A solução correta e justificável em relação aos animais não é a propriedade, mas sim a guarda.

9b. "E quem vai lutar pelos direitos dos animais se eles não forem propriedade?"
Quem quiser. É bastante provável que numa sociedade ancap haja instituições fundadas e financiadas por veganos, que tenham ou que sejam elas próprias agências de segurança, destinadas a combater agressores e acioná-los em tribunais.

A pergunta na verdade é: quem vai lutar pelos direitos dos animais se eles FOREM propriedade? Porque propriedade não tem direitos. Eu posso tanto cuidar do que é meu quanto destruir ou torturar um pouquinho todo dia que ninguém tem nada com isso, afinal é meu.

10. "Animais não possuem direito porque sequer possuem a capacidade de reivindicá-los."
A posse de direitos não depende da capacidade de reivindicá-los porque direitos nem sequer dependem de reivindicação para serem existentes. Eu posso nunca ter reivindicado nada, e nem reivindicar algo depois que você me roubar, o que não quer dizer que foi justo você me roubar, ou que você não violou meu direito ao fazer isso.

10a. "Mas então quem vai promover a punição aos animais se eles próprios não vão?"
Quem quiser. Assim como terceiros podem punir crimes (necessariamente assim quando a vítima morre, inclusive), é bastante provável que numa sociedade ancap haja instituições fundadas e financiadas por veganos, que tenham ou que sejam elas próprias agências de segurança, destinadas a combater agressores e acioná-los em tribunais.

Ainda, mesmo que ninguém promova a punição para os criminosos, a ação deles não deixa de ter sido agressiva e, portanto, antiética.

11. "Os animais são donos de si mesmo mas não podem argumentar em defesa disso"
É verdade, mas já é agressão violar a propriedade de alguém mesmo que ele não exerça o ato de argumentar em defesa de si mesmo.

12. "Você não pode comparar uma pessoa a um animal, pois a vida humana vale muito mais"
Mas o argumento não é dado com base em "valor", o que seria estúpido, especialmente para libertários, que já sabem que o valor é subjetivo. (Aliás, se o seu grande argumento em relação a direitos se baseia em "valor", isso é mais do que um problema no seu ataque aos direitos animais: mostra na verdade uma fragilidade na sua própria defesa dos direitos dos humanos).

13. "Animais não querem morrer apenas por instinto de sobrevivência"
Tão logo um animal perceba que querem atacá-lo ele fará todo o possível para evitar isso. É bastante claro que eles escolhem viver.

Aliás, como você sabe se um humano quer continuar vivo por algo além de um instinto de sobrevivência?

A questão é se o sujeito quer ou não ser morto, a origem psicológica desse querer não o torna menos querer.

14. Animais usam as coisas apenas por instinto, e não conforme deliberação racional
Não interessa se alguém usa algo "por instinto", "apenas para sobreviver", ou por uma "profunda deliberação lógica do estado racional". Não importa, por exemplo, se você se agarrou a uma boia apenas pelo instinto mais primitivo de não se afogar, ainda assim ninguém pode tomá-la de você; importa apenas se o indivíduo é o primeiro usuário de algo, isto é, se ele possui uma vontade e a aplica sobre algo, e que a norma de que o primeiro usuário seja o dono é inegável

15. "Plantas também têm vida!"
Mas ninguém falou em "vida". O argumento é baseado no conceito de agressão, que é a iniciação da força contra a vontade do outro. Dado que plantas não têm mentes elas não têm vontade, então não é que "agressão contra elas pode", mas sim que sequer há algo "contra" a vontade delas.

Agora, ainda que seja o caso de plantas terem mente a conclusão seria que também é errado agredi-las, e não que "está tudo liberado". Esse argumento é usado, na verdade, como um apelo ao consequencialismo, aposteriori. Pretende que desistamos da ideia por causa de consequências desagradáveis que a pessoa supõe, inconveniências ao nosso estilo de vida atual ou mesmo uma extinção que se supõe que ocorreriam Tudo bem se a pessoa é consequencialista. Só que consequencialmente, se não é possível se abster de comer até vegetais e viver sem perturbar bactérias, ainda é perfeitamente possível viver se abstendo de comer carne - como milhares de veganos vivos provam. Então, consequencialmente, não há nenhum problema em cumprir essa parte. Ainda é melhor cumprir o que dá, minimizando agressão, do que não cumprir nada, o que a maximiza.


15a. "Mas se é agressão a ambos, porque eu deveria comer só vegetais e não, por exemplo, comer só carne ou uma mistura de ambos?"
Porque mesmo se fosse agressão a ambos, ainda assim, o "cultivo" de animais envolve muito mais agressão do que o cultivo de plantas*. A vida de uma planta sendo cultivada é basicamente a mesma de uma planta que cresceu naturalmente. Já o animal é necessariamente restringido em sua locomoção, tem seus filhos tomados de si, é alimentado contra sua vontade, sofre mutilações, etc etc.

*Note que isso ainda foi falado considerando plantas que são consumidas por inteiro, e não aquelas das quais obtemos os frutos que elas já dão, situação em que não há qualquer margem para se falar em agressão.

16- "Para entender os desejos de um animal eu deveria ter uma mente do mesmo tipo que a dele"
Falso. Tudo que você precisa para entender os desejos de um animal é que a sua mente seja capaz de entender comportamentos alheios, o que a sua mente é capaz de fazer. Eu posso aproximar fogo de você e, diante da sua reação, entender que você não quer ser queimado. Também posso descobrir isso em relação a um cachorro pelo mesmo método.

17- "Um ser somente pode ser incluído em um julgamento moral, se o mesmo tem a capacidade de escolher entre um certo tipo de comportamento ou outro"
Você é um ser que tem a capacidade de escolher entre um certo tipo de comportamento ou outro, não é? então continua não havendo problema de enquadrá-lo no julgamento moral de que o que você faz com animais é agressão e, portanto, injustificável.

18- "Veganos reclamam de comermos carne mas eles próprios querem obter produtos sabor carne!"
Veganismo não é sobre "odiar carne", e sim sobre se opor à agressão aos animais. Por isso não tem contradição nenhuma em um vegano comer coisas "sabor carne" que não requerem agressão de animais para serem obtidas.

19- "Animais não têm PNA!"
Ninguém "tem" PNA.
PNA é um Princípio de não-agressão, o que pode ocorrer é ele ser respeitado em relação a outros ou não. Os animais têm os mesmos bens naturais - vida, liberdade e propriedade - que os humanos: um animal tem sua vida, a não ser que o matem; tem liberdade, enquanto não o aprisionarem e tem suas propriedades (como um ninho, por exemplo) enquanto não lhe privarem delas. Seguidores honestos de um princípio universal de não-agressão o respeitam universalmente, defendendo a não-agressão aos bens naturais alheios; relativistas ficam inventando motivos para respeitar o princípio em relação a uns e não a outros.

20- "Mas veganos matam mosquitos! Fazendas orgânicas usam defensivos agrícolas naturais pra eliminar pragas!"
"Matarmos mosquitos" ou "eliminarmos pragas" podem ser factualmente verdadeiros, mas são eticamente irrelevantes. Em outras palavras: o fato, aposteriori, de que praticamos essa ou aquela agressão não invalida o raciocínio apriorístico que nos diz que agressão é antiético.

A estratégia essencial no item 20, ao dizer que "fazemos as coisas de determinada forma" é uma tentativa de apelar ao princípio ético de que aquilo que é inevitável, ou impossível de fazer (ou de não fazer) não pode estar sob julgamento ético. Ou seja, não podemos declarar como antiético algo que é impossível de ser de outra forma. Até aqui tudo bem. O problema é que as situações citadas não são, realmente, impossíveis de serem de outra forma. Uma coisa que realmente seria impossível é subir pra baixo, ou desenhar um círculo quadrado, ou ser casado e solteiro simultaneamente, etc etc. A impossibilidade de que se trata no raciocínio ético, como se vê, é a impossibilidade lógica, e não a impossibilidade circunstancial. Deixar de matar animais não é impossível de se praticar. É só inconveniente ao nosso estilo de vida atual, algo que talvez não possamos, circunstancialmente, implementar sem morrermos todos. Mesmo se essa observação for verdadeira, ela é factual, descritiva, e não ética. Da mesma forma que políticos não vão, factualmente, largar tão cedo os privilégios que obtêm à base do roubo, pessoas em geral também não vão cessar toda e qualquer agressão a animais do dia pra noite e morrerem. Isto, embora descritivamente correto, continua eticamente irrelevante, pelo mesmo motivo em ambos os casos.

Também, como ponderado no item 15, se não é possível se abster de comer até vegetais e viver sem perturbar bactérias e mosquitos, ainda é perfeitamente possível viver se abstendo de comer carne - como milhares de veganos vivos provam. Então não há nenhum problema em cumprir essa parte. Ainda é melhor cumprir o que dá, minimizando agressão, do que não cumprir nada, o que a maximiza. (veja também o item 15a).

21- "Veganos são hipócritas, pois aposto que se estiverem morrendo de fome vão comer carne pra sobreviver!"
Em primeiro lugar, ainda que veganos (bem como qualquer um) sejam hipócritas, isso não significa que o que eles fazem hipocritamente seja ético.

Agora, a essência da questão é "você prefere morrer de fome ou comer carne?", ao que o crítico espera que digamos que preferimos comer carne e disso pretende concluir que comer carne é ético. O problema é que o que alguém prefere ou deixa de preferir não é o que define o que é ético ou não é. Seria como perguntar se alguém "prefere morrer de fome ou roubar" e daí concluir que o roubo é ético. Ora, o máximo que esse raciocínio poderia nos demonstrar é que matar animais (bem como roubar) seria ético quando a alternativa for a própria morte, e não que matar animais (e roubar) é ético sempre, como pretende o crítico dos direitos animais.

22- "Meus antepassados não criaram arco e flecha para eu caçar repolho!"
Mas, pela mesma lógica capenga, nossos antepassados também não inventaram agricultura para você ficar caçando — nem inventaram a ética para você continuar agindo de forma injusta. Só porque inventaram uma arma ou uma ferramenta então qualquer uso dela é sempre ético? Posso matar inocentes com ela então? Não.

23. "Suas conclusões levarão à extinção da nossa espécie!" / "Sua ética abrange animais e deveria abranger plantas também, criminalizando viver! Ela torna impossível a resolução de qualquer conflito, já que existirá o conflito primordial da manutenção da própria vida."
Essa é uma das principais estratégias empregados pelos adversários dos direitos animais: esticar a conclusão pró-animais para qualquer forma de vida, alegando que nossas premissas éticas culminarão na nossa extinção, que isso é contra a ética em si e, portanto, tais premissas devem ser rejeitadas.

É possível discutir o erro da tentativa de esticar a conclusão, como feito até em perguntas anteriores. Mas a estratégia como um todo desse critério da "sobrevivência da espécie" como validador ético é falsa.

Se for uma verdade ética que não devíamos comer nem plantas, isto é, que o ético seria morrermos de inanição, a verdade não deixa de ser verdade só porque levará à extinção da nossa espécie. É justamente porque a verdade NÃO tem compromisso com a sobrevivência da nossa espécie, que a tal estratégia de debate não passa de um non-sequitur.

Conflitos se dão quando há duas ou mais vontades mutuamente excludentes sobre algo, isto é, duas vontades que não podem ser satisfeitas simultaneamente: João quer matar Zé; Zé quer ficar vivo. A solução de um conflito consiste em dizer qual das partes conflitantes ou potencialmente conflitantes está correta, ou seja, qual das duas vontades conflitantes deve prevalecer. A solução seria tornada impossível se uma regra ética trouxesse alguma norma que declarasse duas vontades mutuamente excludentes como corretas simultaneamente (e.g. eu tenho direito ao que é meu mas você tem direito de me roubar ao mesmo tempo). Ou declarasse que algo é permitido e proibido ao mesmo tempo ("é errado agredir e é errado não agredir").

A conclusão de que "não podemos nem comer plantas", mesmo se verdadeira, não torna impossível a resolução de conflitos. Ela estabelece, claramente, num suposto conflito entre nós e as plantas, qual vontade deveria prevalecer —e, infelizmente para nós, seria a delas: a verdade ética seria, simplesmente, que se nossa sobrevivência depende de agressão e a agressão é antiética, então nossa forma de sobrevivência é antiética. O ético é não agredir, se isso nos levará à morte, azar o nosso. Provavelmente ficará mais fácil você perceber isso imaginando não "nós", mas uma raça alienígena que precisasse sugar mentes racionais para sobreviver e viesse almoçar aqui na Terra. Não importa que eles precisem disso para sobreviver, ainda seria —e não teríamos problema em perceber— que é antiético o que eles querem/precisam. Pelo mesmo motivo, aliás, que não autorizamos alguém a roubar um rim de outro, mesmo que ele precise desesperadamente disso para sobreviver e isso nem fosse causar a morte do outro.

A verdade não deixa de ser verdade só porque levará à extinção da nossa espécie. Por isso, reforço: a estratégia de invalidar um raciocínio apriorístico alegando que a conclusão obtida vai culminar na nossa extinção não é válida. O apelo que essa estratégia tem é utilitário: nós somos seres que perseguem o bem-estar de estar vivo. Isso está enraizado em nossa mente, afinal, só estamos aqui porque uma longa cadeia de ancestrais foi eficiente numa única coisa: continuar vivo e procriar. Mas os autores aprioristas rejeitam fortemente o utilitarismo ético. Não faz o menor sentido tentar resolver uma argumentação apriorística para a ética recorrendo, no fim, a um raciocínio utilitário. E se abandonamos o absolutismo apriorístico em prol do consequencialismo utilitarista, então novamente observamos que, consequencialmente, se não é possível se abster de comer até vegetais e viver sem perturbar bactérias, ainda é perfeitamente possível viver se abstendo de comer carne e sem maltratar animais - como milhares de veganos vivos provam. Então, consequencialmente, não há nenhum problema em cumprir essa parte. Ainda é melhor cumprir o que dá, minimizando agressão, do que não cumprir nada, o que a maximiza.

Podemos descrever esta questão com o seguinte silogismo:

Argumenta o consequencialista que... (Conclusão_1) matar plantas deve ser considerado ético
...Já que... (P2) matar plantas é indispensável para nossa sobrevivência
...e com base no princípio de que (P1) Matar outro deve ser considerado ético se for indispensável para nossa sobrevivência; e deve ser considerado antiético se for dispensável,
Mas se... (P1) Matar outro deve ser considerado ético se for indispensável para nossa sobrevivência; e deve ser considerado antiético se for dispensável
...E dado que... (P2') matar animais é dispensável para nossa sobrevivência
...Logo, (Conclusão'): matar animais deve ser considerado antiético.

Questão encerrada, e a premissa P1, levantada pelo próprio consequencialista, já fornece a explicação do porquê o consumo de plantas estaria autorizado enquanto o de animais não.

24. "Animais são coisas, não pessoas! Dizer que eles sentem dor não os torna humanos"
Ninguém disse que animais são "tornados humanos", nem "pessoas". O argumento não é baseado em "sentir dor e reagir a estímulo". Animais são pacientes morais, diferentemente de objetos eles são seres capazes de estados de maior e menor satisfação, capazes de aceitar ou se opor a ações —como iniciação da força— sendo feitas contra eles. Agressão é iniciação da força contra a vontade do outro. Animais, sendo capazes de vontade, estão passíveis de sofrerem agressão. Agressão é antiética.

25. "A nossa sociedade é onivora e animais aqui não tem direitos"
O fato de uma sociedade ser ou estar organizada de determinada forma não implica na inexistência de direitos daqueles que a organização dela agride.

26. "Essa questão de direitos animais já está respondida a muitas centenas de anos, não há o que debater e ponto final"
Mas se uma questão está realmente resolvida em definitivo num dado momento, na prática ninguém fica discutindo-a e não haveria como entrar nessas discussões não existentes para dizer que elas não deveriam ocorrer. Só o fato de a pessoa estar precisando (e tendo uma oportunidade para) recorrer ao argumento do item 26 já mostra que a questão não está resolvida de forma tão definitiva quanto ela alega. É justamente porque a questão não está resolvida que ela está atraindo e tracionando tantas pessoas em discuti-la.

Na verdade já há respostas para praticamente qualquer assunto que se discuta, o ponto é que "haver respostas" é diferente de elas estarem corretas. Essa estratégia "anti-debate" tem, isso sim, uma explicação psicológica: a pessoa já estava confortável com as respostas que tinha e não quer enfrentar as perturbações de colocar isso à prova, por isso ela tenta desencorajar a discussão daquilo com que já estava tranquila.

27. "Você está negando a cadeia alimentar!"
Não é só porque existe uma cadeia alimentar que isso significa que ela seja justa. Da mesma forma que existe uma hierarquia de força entre os próprios homens e isso não significa que é justo os mais fortes escravizarem os mais fracos.

A cadeia alimentar também não nos obriga a obter nossa nutrição através da agressão a animais. É possível se nutrir de outras formas, como milhares de veganos vivos nos provam.

28. "Como o veganismo pode ser verdadeiro se existem plantas carnívoras?"
Apontar para a existência de plantas carnívoras refutaria as ideias de que "plantas são modelos de conduta" e "não podemos comer carne porque plantas não comem". Mas o veganismo não se baseia em nenhuma dessas ideias.


Por fim...
A cada avanço proporcionado pelo mercado e pela ciência que nos permite deixar de depender da exploração dos animais, continuar defendendo a legitimidade de maltratá-los não é outra coisa se não puro sadismo, pura defesa da agressão contra não-agressores.

200 países, 200 anos e 1 efeito curioso


Pobreza já teve um significado objetivo: pobre era quem não tinha condição de atender suas necessidades mais básicas. Boa parte daqueles chamados de pobres hoje em dia vive melhor que os de antigamente e até melhor do que os ricos de séculos atrás.

Uma premissa básica dos anticapitalistas é ignorar que o status inicial de todo mundo, a igualdade de oportunidades inicial, já existe e é a pobreza. O vídeo ilustra esse ponto perfeitamente bem: no começo todos os países estavam no mesmo canto, igualmente pobres. O que vemos ao longo de 200 anos de estatísticas são países abandonando a pobreza inicial — e note que ao se moverem pra cima eles não empurram os demais pra baixo com isso. É triste que alguns países ainda não os tenham alcançado no canto de cima do gráfico, mas a solução certamente não é recriminar ou tentar puxar de volta aqueles que se distanciaram de tal pobreza inicial.

No mesmo sentido, por outra fonte:
Fonte: https://ourworldindata.org/grapher/world-population-in-extreme-poverty-absolute

Como se pode ver em ambos os casos, há cada vez menos pobres. No entanto, o fato de o capitalismo permitir que tantas pessoas estejam acima da pobreza objetiva parece, para certos críticos, apenas realçar o fato de que algumas pessoas ainda estão nessa condição. Gera-se assim um curioso efeito: quanto MENOS pobreza há, MAIS histeria se cria em volta dela.

Ética e direitos animais (3) - Racionalidade, Uso e Ação ...Humana?


O artigo anterior, Crítica à conclusão hoppeana, tratou da injustificabilidade argumentativa da agressão a animais, assumida a validade incontestável da norma de primeiro-usuário-primeiro-dono.

Uma última saída àqueles que negam direitos a animais seria apelar a um significado especial para "uso", argumentando que ele é feito por meio da ação, que só seres humanos, racionais, seriam de fato seres que agem e que, dessa forma, animais não poderiam ser donos porque nem sequer usam seus próprios corpos.

O que é uso - considerações sobre controle direto
Em primeiro lugar, vamos definir então o que caracteriza o "uso": trata-se de um vínculo de controle direto entre o possuidor e a coisa possuída. No artigo How We Come to Own Ourselves, Stephan Kinsella nos fornece uma boa explicação sobre isso:
"O "link objetivo" no caso da propriedade de corpos é o relacionamento único entre uma pessoa e "seu" corpo - o controle direto e imediato sobre o corpo dele, e o fato de que, pelo menos em algum sentido, um corpo é uma dada pessoa e vice-versa. Isso é o que constitui o link objetivo e suficiente para conceder àquela pessoa um melhor título [de propriedade] a seu corpo do que o de qualquer terceiro reclamante, até mesmo seus pais. 
Além disso, qualquer terceiro que reivindique a propriedade de outro corpo não pode negar este link objetivo e o status especial dele, já que esse terceiro necessariamente o pressupõe em seu próprio caso. Isso é assim porque ao procurar dominação sobre o outro, ao afirmar propriedade sobre o corpo de outro, esse terceiro tem que pressupor sua própria propriedade sobre seu corpo, o que demonstra que ele reconhece uma certa significância neste link, ao mesmo tempo em que desconsidera a significância do link para o outro."
Kinsella, é claro, estava pensando em "pessoa" quando escreveu, mas nada do que ele disse deixa de ser válido para animais. O relacionamento único entre um ser e seu corpo não deixa de existir nem de ser um link objetivo só porque esse ser é de outra espécie; e nenhum terceiro pode negar a significância desse link, pois ao fazer isso o ato dele já demonstra a significância desse link.

No mesmo sentido, Hoppe escreveu:
"Ninguém poderia considerar o meu corpo como sendo um produto de sua vontade da mesma forma como eu posso considerá-lo um produto da minha vontade; essa pretensão ao direito de determinar o uso desse recurso escasso que chamo de "meu corpo" seria uma reivindicação de não-usuários, de não-produtores, e estaria baseada exclusivamente na opinião subjetiva, ou seja, numa declaração meramente verbal de que as coisas deveriam ser desta ou daquela forma."
Declarações meramente verbais baseadas na opinião subjetiva de que as coisas deveriam ser desta ou daquela forma são precisamente tudo que humanos têm a oferecer quando se trata de animais. Não passa de "Eu gosto de bacon" e "O porco é meu porque eu o capturei e me declarei dono". Mas o FATO, objetivo, ainda é que o próprio porco é o primeiro —e único— ocupante e controlador direto do respectivo corpo.

Verificabilidade do link objetivo de controle direto
Uma vez entendido que a autopropriedade tem como marco inicial o link objetivo de controle direto, pode ser formulada uma questão sobre a verificabilidade desse link. Algo como "bem, animais podem até ser os controladores de seus corpos, mas como eles provariam isso? hehe que pena". Afora a capenguice intelectual de considerar ausência de prova como prova de ausência, quero destacar que mesmo se um animal não possa ele próprio demonstrar (num sentido filosófico-argumentativo) algo, isso não significa que nós ainda não possamos verificar esse algo por nós mesmos.

De fato, Hoppe fala em termos de um link objetivo intersubjetivamente verificável. Entendamos o que esses dois termos significam:

Sobre a verificabilidade, o link precisa ser verificável, não "demonstrável pelo próprio linkado" nem "já demonstrado por ele". A questão então é se o link é verificável, não se o próprio interessado tem capacidade de executar no aspecto filosófico essa demonstração.

Também não se trata de um link "intersubjetivamente verificado". Isso significa que o link não precisa ter sido verificado entre sujeitos para ter significância, mas que ele possa sê-lo

Na verdade, dado que é possível fazer proposições "como pensamento interno" para "convencer a si próprio", como o próprio Hoppe reconhece, não é necessário sequer mais do que o próprio sujeito pensando consigo mesmo para se concluir pela significância do link. E, principalmente, não há necessidade do envolvimento de mais de um sujeito também para a verificabilidade da existência dos respectivos controles entre dois ou mais sujeitos.

Vejamos. Segundo Hoppe, a resposta para a questão de o que faz o meu corpo "meu" repousa no óbvio fato de que isto não é apenas uma asserção mas que, à vista de qualquer um, esse é realmente o caso. E esse será o caso conforme o corpo em questão expresse ou "objetifique" a vontade daquele ser. A verificação desta expressão de vontade, sugere Hoppe, pode ser feita da seguinte forma:
"Quando eu anuncio que vou levantar meu braço, virar minha cabeça, relaxar na minha cadeira (ou o que seja) e esses anúncios em seguida se tornam verdade (são cumpridos), então isto mostra que o corpo que fez isso foi de fato apropriado pela minha vontade. Se, ao contrário, meus anúncios não mostrassem nenhuma relação sistemática com o comportamento efetivo do meu corpo, então a proposição "esse é meu corpo" teria que ser considerada como uma asserção vazia e objetivamente infundada; e da mesma forma essa proposição deveria ser rejeitada como incorreta se em seguida ao meu anúncio não apenas meu braço se erguesse, mas também sempre os braços de outras 3 pessoas (nesse caso alguém provavelmente estaria inclinado a considerar os corpos dessas outras 3 pessoas como "meus")."
O que Hoppe parece não ter percebido é que essa demonstração não só permite encontrar o que é meu, mas também e necessariamente aquilo que não é meu. Os limites do meu controle não trazem conclusões só "para o lado de dentro", sobre o que eu controlo diretamente, mas também "para o lado de fora" do limite: demonstrando o que eu não controlo diretamente. Quando faço a prova da extensão do meu controle direto, isso já me diz também que os braços das outras 3 pessoas não estão sob o meu controle direto!

Se observamos que estes braços (ou qualquer outra coisa) não exibem qualquer comportamento, então obviamente não pode haver qualquer entidade exercendo controle direto sobre eles, e portanto eles podem ser apropriados, isto é, passarem a ser controlados (controle indireto) pela vontade de alguém.

Mas se exibem comportamento, então há alguma vontade envolvida. Além de possuírem atributos, como seus corpos, seres animados, por definição, exibem comportamentos (ao contrário dos inanimados, que só possuem atributos). Ora, mas se os comportamentos dos seres animados ocorrem e não são controlados por mim, a única conclusão é que existe outra entidade que o controla diretamente, conforme a vontade dela, que não é a minha. Se ela é a controladora direta, só ela pode ser a proprietária, não eu.

Assim, concluindo, a verificação de quais comportamentos estão sob controle direto da minha vontade já implica necessariamente na demonstração de que outros comportamentos estão sob controle direito de outras vontades, que não a minha, dispensando assim qualquer esforço filosófico adicional de demonstração por parte delas frente a mim. Ou seja, mesmo que animais não possam apresentar a verificação, eles próprios, qualquer um pode executar tal verificação sozinho.

Com esta conclusão, podemos encerrar em definitivo todos os argumentos que negavam direitos apelando para uma suposta necessidade de o próprio agente provar seus direitos para tê-los e que animais (bem como bebês ou retardados) não conseguiriam cumprir tal necessidade. Com o raciocínio desenvolvido aqui, fica evidente que tal verificação pode ser feita individualmente, não necessitando de qualquer ação de terceiros para ser realizada, sendo desimportante, assim, se eles próprios podem ou não fazê-la.

Uso (ou controle direto) enquanto ação - algo exclusivo dos humanos?
Esclarecidas as questões quanto à verificabilidade do controle direto, podemos lidar então com o argumento de que controle é feito por meio de ação, mas que animais seriam incapazes de agir. "Ação" aqui faz referência às considerações de Ludwig Von Mises, em seu livro "Ação Humana". Apesar de, logo de cara, Mises já ter intitulado seu trabalho como "ação humana", observemos quais são os pré-requisitos que ele levanta para caracterizar uma ação e vejamos se eles só dizem respeito mesmo a humanos:
"O agente está ansioso para substituir uma situação menos satisfatória por outra mais satisfatória. Sua mente imagina situações que lhe são mais propícias, e sua ação procura realizar esta situação desejada. O incentivo que impele à ação é sempre algum desconforto. Mas, para fazer um ser agir não bastam o desconforto e a imagem de uma situação melhor. Uma terceira condição é necessária: a expectativa de que um comportamento propositado tenha o poder de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto."
Suponha um cachorro que num dia frio resolve ir pro meio das cobertas. Ele vislumbrou a imagem de uma situação melhor (se aquecer) e, com a expectativa de que o comportamento propositado de ir pras cobertas teria o poder de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto, foi isso que ele fez, Este evento incorporou os 3 requisitos da ação, logo não há porque declarar que tal cachorro não teria AGIDO.


Pode haver algum questionamento quanto ao comportamento do animal se tratar realmente de algo propositado. Diz-se "propositado" um comportamento que tenha sido feito com algum fim: o comportamento do cão evidentemente foi feito tendo em vista o fim de que ele se livrasse do desconforto causado pelo frio. Não fosse o comportamento desempenhado propositadamente, o animal reagiria de forma simplesmente aleatória frente a um mesmo desconforto: hoje pode ser que ele vá para as cobertas, amanhã pode ser que ele pule na tigela de água, no outro dia, comece a roer a própria perna e etc. Não é o que ocorre. Uma vez entendido a vínculo entre um comportamento e seus resultados, o animal (incluindo os animais da espécie humana) o executará propositadamente para alcançar situações mais satisfatórias. O propósito da ação também é revelado quando observamos o comportamento de frustração ou confusão que observamos no animal quando ele tenta algo e não consegue: ora, tais comportamentos só fazem sentido a partir do momento em que havia uma propósito na ação, que não foi atingido. Confusão e frustração demonstram quebra de expectativa, e só pode manifestar tal comportamento quem já tinha uma expectativa de início.

O que Mises descreveu não foi exatamente "ação humana", nem mesmo a ação racional como um todo, mas algo como a "função cerebral econômica" - e mesmo animais, naquilo que são capazes de desempenhá-la, se comportam conforme tal função, inclusive.

Tão logo aprendam que um objeto pode ser trocado por outro, por exemplo, animais se comportam de acordo com os princípios praxeológicos, revelando por exemplo possuírem uma escala de preferência e agindo segundo ela. Você pode constatar isso ao assistir o experimento abaixo, em que o macaco protesta efusivamente por receber, por igual moeda, um bem inferior ao de outro colega:


As diferenças entre humanos e animais, naquilo que diz respeito às ações, parecem ser mais quantitativas do que qualitativas. Nós conseguimos considerar mais variáveis ("imaginar mais situações que lhe são mais propícias"), fazer cálculos mais complexos entre elas, apreender mais relações de causa e efeito no mundo, mas é só isso.

Ação propositada
Se a ideia é que direitos de propriedade se aplicam apenas para aqueles que agem, os animais continuam  incluídos, pois claramente desempenham ações.

Uma última observação: as considerações de Mises sobre a ação se deram numa esfera econômico-descritiva, não ética. Quando Hoppe identificou a argumentação como incluída na categoria da ação, o efeito disto é simplesmente que o método da ética argumentativa passou a desfrutar do mesmo status axiomático/inegável da economia (praxeologia) miseana, e não que as normas validadas pela ética argumentativa só se estenderiam a quem é capaz de agir.


Com as considerações deste post e dos anteriores, espero ter demonstrado que os argumentos dos autores libertários popularmente levantados não nos permitem excluir animais de direitos, ou alegar que eles estejam excluídos de considerações éticas. Muito pelo contrário, aliás, a análise que fizemos da proposta libertária aponta para a validade de suas disposições éticas de tal forma que ativamente desautoriza agressões a animais. Podemos, por fim, formular de fato um argumento positivamente em prol dos direitos dos animais da seguinte forma:

1. A validade da norma de que o primeiro usuário seja o dono (autoproprietário) é inegável (conforme o raciocínio da Ética Argumentativa)
2. O animal é o primeiro usuário do respectivo corpo
3. Logo, ele é o dono daquele corpo (autoproprietário)
4. É impossível justificar agressão ao dono, pois isso envolveria negar a norma da autopropriedade. Mas, como em (1), ela é inegável
5. O animal é o dono
6. Agressão ao animal é injustificável.


Se a Ética Argumentativa não só fracassa em negar direitos a animais, como na verdade oferece um paradigma para demonstrá-los, haveria então alguma outra proposta a recorrer? No próximo post, Ética e direitos animais (4) - Resposta a Molyneux analisaremos a proposta do libertário Stephan Molyneux, em seu Universaly Preferable Behaviour.

No último post da série, estão as respostas para algumas perguntas comuns, sobre as implicações práticas da conclusão pelos direitos dos animais, especialmente sobre responsabilização de agentes.


___________________________________________________
Mais sobre o corvo: no vídeo a seguir ele conhece as tarefas individuais, e pela primeira vez precisa combiná-las da forma correta para conseguir o objetivo. 

Ética e direitos animais (2) - Crítica à conclusão hoppeana


No artigo anterior, Crítica à abordagem jusnaturalista, foram demonstradas as falhas desta abordagem para a negação de direitos aos animais. No presente artigo, tentarei fazer igual demonstração, agora em relação às conclusões da abordagem jusracionalista/'argumentativista" de Hans-Hermann Hoppe.

Note que, enquanto o artigo anterior era uma crítica à abordagem jusnaturalista, como um todo, este artigo é uma crítica à conclusão hoppeana; apontarei que, assumindo a ética argumentativa como válida, a negação de direitos a animais com base nela está incorreta.

Note também que, embora esse artigo esteja no contexto dos direitos dos animais, as conclusões aqui são válidas para a ética argumentativa em geral, incluindo as controvérsias relativas a outros não-argumentadores, como deficientes mentais e bebês.

Comecemos então com uma breve introdução à ética argumentativa:

Em seu artigo The Ultimate Justification of the Private Property Ethic, Hoppe parte da observação de que toda norma, ao ser justificada, terá tal justificação feita proposicionalmente, i.e. argumentativamente. Em outras palavras: sempre que a questão do justo for levantada, sempre que uma norma for defendida como justa ou injusta, essa justificação será feita por meio de uma declaração, será uma defesa argumentativa: alguém estará dizendo que algo é justo ou não.

Também é observado pela ética argumentativa que tal justificação já pressupõe certas normas (as "normas do discurso") como válidas:
“ao afirmar qualquer proposição, abertamente ou como um pensamento interno, alguém demonstra sua preferência em depender de meios argumentativos para convencer a si mesmo ou aos outros de alguma coisa."
Em seguida, Hoppe inteligentemente pontua que:
"Ninguém poderia propor nada, e ninguém poderia ser convencido de uma proposição por meios argumentativos, se o direito de se fazer uso do próprio corpo físico já não fosse pressuposto."
Assim
“Qualquer um que tente justificar qualquer norma com qualquer conteúdo já deve pressupor um direito exclusivo de controle sobre seu corpo simplesmente para dizer "eu proponho isso e aquilo". E qualquer um que dispute tal direito, seria pego numa contradição prática, já que ao argumentar isso, esse alguém já estaria aceitando implicitamente a própria norma que tenta negar."
A contradição prática de que Hoppe fala é também referida, mais comumente, como "contradição performativa" ou "contradição performática".

Em resumo, a abordagem da ética argumentativa nos diz que
(a) Justificação (como a necessária para justificar uma norma ética) é justificação feita argumentativamente;
(b) Uma argumentação, para ser feita, já pressupõe que certas normas do discurso são válidas (para Hoppe, a autopropriedade e o princípio do homesteading são as normas que qualquer argumentação já pressupõe como válidas);
(c) A validade destas normas é inegável. Pois, ao tentar justificar normas que contrariem as normas do discurso, o argumentador cairia numa contradição performativa: estaria tentando alegar a invalidade de uma norma ao mesmo tempo em que o ato dele já requer e demonstra a validade de tal norma.

A partir desse raciocínio, muitos (incluindo o próprio Hoppe) acreditam que segundo a ética argumentativa apenas seres que tenham "capacidade de argumentação" teriam o direito de não serem agredidos.

Essa conclusão está errada, e tentarei demonstrar a seguir o porquê.

- O papel da argumentação (ou da "capacidade de argumentação") na ética argumentativa:
A ética argumentativa propõe apenas que a validade de certas normas é pressuposta —isto é, vem antes da prática do discurso e que essa validade é inegável por meio de discursos. Só isso, nada além disso. Você pode confirmar relendo a introdução deste artigo.

Essa impossibilidade de negar a validade da norma é atemporal e universal, portanto a validade desta norma é atemporal e universal.

Assim, a ética argumentativa não propõe que certas normas são válidas "por causa da existência de discursos" nem que sejam válidas "durante a prática de discursos", nem que sejam válidas "para indivíduos conforme eles sejam capazes de discursar sobre elas", tampouco diz que as normas são válidas "em relação a indivíduos capazes de discursar". Ela nos diz simplesmente que a validade de certas normas é inegável.

A capacidade argumentativa é, sem dúvida, necessária para alegar que uma norma seja ou não justa. Mas não existe —ou pelo menos ninguém mostrou que exista— uma implicação entre o fato de a argumentação ser necessária para apresentar tal justificação de normas éticas e entre isso significar que estas normas só digam respeito a condutas em relação a argumentadores. Tomemos um exemplo mais neutro: alguém que afirme "eu estou morto" estaria cometendo uma contradição performativa, já que para se fazer tal afirmação é necessário estar vivo. Nem por isso concluímos que "só quem é capaz de argumentar tem vida" ou que "ser capaz de argumentar é requisito para ter vida". Da mesma forma, não é válido concluir que, porque é necessário argumentar para justificar direitos, só quem os justifica os tem, ou que seja necessário ser capaz de argumentar para tê-los.

A capacidade argumentativa só seria um requisito para ter o direito de controle exclusivo sobre algo caso esse direito precisasse ser afirmado para ser válido a quem o afirmou. Não é o caso. O direito de controle exclusivo de qualquer um é considerado válido conforme seja inegável, e não "conforme seja afirmado". É a tentativa de negar ou afirmar (argumentativamente) a validade de tal direito que requer capacidade argumentativa para ser feita; não a participação em tal direito ou o usufruto dele.

Em outras palavras, numa ética argumentativa, a argumentação aparece como um elemento de validação de normas éticas, e não de produção delas nem de participação nelas. A argumentação desempenha o papel como o de uma régua, um gabarito para dizer quais normas são válidas e quais não. Afirmar que tais normas só digam respeito a quem é capaz de argumentar é tão infundado quanto dizer que a característica "altura" só diz respeito a quem for capaz de fazer medições com fita métrica.

- Ética argumentativa ou "Ética argumentada"?
A ética argumentativa hoppeana nos traz parâmetros objetivos e inegáveis: justificação (como a necessária para normas éticas) é justificação argumentativa; somente uma norma justificável argumentativamente pode ser válida; não haveria como justificar argumentativamente a violação à autopropriedade de terceiros; e autoproprietário é aquele que tem o link objetivo de primeiro uso.

Ao mesmo tempo, porém, os defensores da ética argumentativa passam a tratá-la não como justificação argumentativa, mas como uma "Ética argumentada", uma ética em que argumentadores se sentarão em círculo e produzirão uma ética a partir de seus argumentos, até chegarem a um acordo argumentado, o qual fornecerá a resolução para o conflito.

Mas a ética argumentativa já nos diz qual é a única norma válida, então que diferença acordos fazem? Nenhuma. Se chegássemos a um acordo de que eu posso pegar suas coisas sempre que eu quiser, mesmo que você não queira, a ética argumentativa ainda diria que a situação desse acordo é injustificável, porque estaria violando as únicas normas de validade inegável.

Dito de outra forma: a verdade, qual seja, de que agressão é injustificável, uma vez encontrada, (como aconteceu assim que você leu este post) dispensa sucessivas novas argumentações a cada caso para ser "reencontrada". O sujeito já sabe que a agressão é injustificável. Portanto, já deve se comportar de acordo com a norma da não-agressão independentemente de se engajar em novas argumentações com a próxima vitima.

Sendo novas argumentações desnecessárias, então a vítima não precisa argumentar nada e por isso continua não fazendo sentido exigir que ela seja capaz disso para só aí sabermos que ela deve ser respeitada.

- A questão entre meramente evitar contradição performativa e entre estar de fato justificado argumentativamente:
E que tal o seguinte argumento: se o outro lado não puder argumentar, então qualquer um poderia fazer qualquer coisa em relação a ele pois, como sequer teria feito algum argumento em relação a esse outro, então não cairia em contradição performativa. Hoppe também parece apelar para tal ideia quando diz que não se deve esperar que uma pessoa dê qualquer resposta para um outro que jamais fez alguma pergunta[1].

Se por um lado, alguém sempre pode dizer que, por não argumentar com outros, ele jamais cairá em contradição performativa frente a eles, por outro lado, o que esta pessoa esqueceu é que abster-se de argumentar ainda não significa que suas ações sejam argumentativamente justificáveis.

Permita-me enfatizar isso:
Abster-se de argumentar livra alguém de cair na contradição performativa, mas não significa que suas ações sejam argumentativamente justificáveis.

Se assim fosse, qualquer um poderia já chegar matando alguém e quando questionado simplesmente dizer "eu não fiz argumento nenhum de nada com ninguém então não houve contradição performativa, logo estou justificado argumentativamente hue hue lance limpo segue o jogo". Se fosse, mas não é.

O fato de você não argumentar com um terceiro, seja porque você não quis ou porque ele mesmo é incapaz de argumentar algo, não implica que você já está automaticamente justificado argumentativamente em fazer o que quiser com ele nem com ninguém. Apenas ao desempenhar ações justificáveis argumentativamente é que você estará justificado de fato.

Mas como escreveu Frank Van Dun[2]:
"Ninguém pode argumentar consistentemente que meios argumentativamente injustificáveis de lidar com outros devem prevalecer; portanto não pode haver justificação alguma àquele que recorrer a tais meios de lidar com outros."
E nas palavras de Hoppe:
"Afirmar que a regra de primeiro-usuário-primeiro-dono do libertarianismo pode ser ignorada ou é injustificada implica numa contradição".
Van Dun e Hoppe não acham que animais estão incluídos nas normas de não-agressão, mas observe que as declarações citadas de cada um deles pretendem ser válidas universalmente. O fato de que "não pode haver justificação a meios injustificáveis de lidar com outros" permanece independentemente de quem sejam esses outros. A contradição de dizer que a regra do primeiro-usuário-primeiro-dono pode ser ignorada não desaparece para alguns usuários.

Ora, se é impossível afirmar a invalidade da norma de primeiro-usuário-primeiro-dono ou que ela pode ser ignorada, então a questão se resume a: que reivindicação VOCÊ, nobre argumentador, pode fazer para ser você o dono do corpo de um animal? Que link objetivo você tem pra reivindicar sobre o corpo de um animal que seja melhor que o primeiro uso que ele mesmo já faz do próprio corpo? Se você não tem link melhor, então não pode estar justificado em se declarar dono dele, ou fazer o que quiser com ele.

- Capacidade argumentativa e o Argumento Finalístico da propriedade
Defensores dessa linha tentam salvar a exigência da "capacidade argumentativa" ressaltando que direitos de propriedade existem com a finalidade de que sejamos capazes de, com eles, resolver pacificamente conflitos por meio de argumentações. Assim, aquele que não é capaz de argumentar, não poderia desempenhar essa finalidade e portanto estaria fora do universo dos direitos de propriedade.

O argumento finalístico pode ser formulado assim:
"a capacidade de argumentação é que confere ao possuidor de algo o direito de possuí-lo pois é ela que o torna capaz de pacificamente resolver conflitos advindos dos recursos escassos que precisa para sobreviver"

Em primeiro lugar, eu não preciso ser capaz de resolver pacificamente conflito nenhum para ter direito ao que é meu. No momento do conflito eu já terei sido o primeiro que usou aquela coisa, portanto ela já será minha. Uma vez que o conflitante já se caracteriza como agressor objetivamente, (pois nem ele nem ninguém pode invalidar a norma de primeiro-uso-primeiro-dono e eu sou o primeiro usuário), eu não preciso convencê-lo pacificamente de nada, já estando justificado em usar a força para defender o que é meu.

Em segundo lugar, a questão é que se pode não só resolver conflitos como também se pode EVITÁ-LOS (evitar iniciá-los) usando o conceito de propriedade, e de fato fazemos isso a maior parte do tempo, argumentando conosco mesmo ("como um pensamento interno", "convencer a si mesmo" na expressão de Hoppe). E o que é "usar o conceito de propriedade"? É justamente analisar, tendo por base que a única proposição justificável é a da autopropriedade e do homesteading (primeiro-uso-primeiro-dono), quem estaria justificado no eventual conflito: se esse alguém não é você, não inicie o conflito. Ponto.

A partir do parágrafo acima, fica bastante fácil entender o erro de Hoppe no trecho a seguir[3]:
"Suponha, em meu cenário anterior de Crusoé e Sexta-Feira, que Sexta-Feira não fosse o nome de um homem, mas de um gorila. Obviamente, assim como Crusoé poderia se envolver em conflitos com Sexta-Feira, o homem, em relação a seu corpo ou ao local que ocupa, poderia se envolver da mesma forma em conflitos com Sexta-Feira, o gorila. O gorila pode querer ocupar o mesmo espaço que Crusoé já ocupa. Nesse caso, pelo menos se o gorila for do tipo de ente que gorilas são conhecidos por serem, não haveria uma solução racional para o conflito."
Mas é claro que existe uma solução racional para o conflito. É a regra de primeiro-usuário-primeiro-dono, a única regra justificável. O que pode não existir é uma "solução racionalmente negociada", mas a ética argumentativa não se presta a negociações, por não se tratar de uma "ética argumentada", como comentado anteriormente. Outra coisa que pode não existir é o conhecimento acerca de tal solução racional, por parte de algum ou de todos os envolvidos no conflito — como é o caso de Sexta-Feira, o gorila. Mas a solução racional permanece a mesma. Segue Hoppe:
"Ou o gorila iria acossar, esmagar e devorar Crusoé - essa seria a solução do gorila para o problema -, ou Crusoé iria domar, caçar, abater ou matar o gorila - essa seria a solução de Crusoé."
Não existe "solução de fulano" ou "de beltrano" para o problema. Existe a solução ética, racional e justificável e existem "coisas que indivíduos vão fazer". Se determinado indivíduo, seja ele um gorila ou um assaltante qualquer, só vai interagir na base da violência, isso não significa que a solução racional desapareceu. Ainda teremos alguém que iniciou a agressão —e que está do lado injustificável, portanto—, e alguém que se defendeu dela —que está do lado justificável, portanto. O fato de que Crusoé está justificado quando/se o gorila o atacar não torna Crusoé justificado se em vez disso ele próprio for lá atacar o gorila.

Dessa forma, se você segue esta linha finalista e tem a pretensão de evitar conflitos, não importa se o outro teria ou não a capacidade de fazer essa análise —  ora, se VOCÊ tem, VOCÊ já pode fazê-la e lidar com o conflito, descobrindo se está justificado ou não. Se não está, não inicie o conflito.

Ao ignorar o uso de alguns proprietários, o finalista está deliberadamente recusando pensar pela propriedade. Ele está escolhendo prevalecer em conflitos com outros à margem do que ela nos justifica e à margem das soluções que ela tem a oferecer: ele está se recusando a aplicá-la para cumprir a finalidade que ele mesmo afirmava embasá-la. 

- O argumento da apropriação e sobrevivência na ética argumentativa
Convém esclarecer uma confusão que poderia surgir a partir do seguinte trecho:
"seria igualmente impossível a alguém sustentar a argumentação por qualquer período de tempo e contar com a força proposicional dos próprios argumentos, se ele não fosse autorizado a apropriar-se, além de seu próprio corpo, também de recursos escassos por meio da ação de homesteading, i.e., ao colocá-los em uso antes que qualquer outro o faça, ou se tais recursos, e os direitos de controle exclusivo em relação a eles, não fossem definidos em termos físicos objetivos. 
Pois se ninguém tivesse o direito de controlar coisa alguma, exceto seu próprio corpo, então todos nós deixaríamos de existir e o problema de justificar-se normas —bem como todos os problemas humanos— simplesmente não existiriam. Portanto, o fato de que alguém está vivo pressupõe a validade do direito de propriedade sobre outras coisas. Ninguém que está vivo pode argumentar o contrário."
À primeira vista, pode parecer que o argumento hoppeano é que "para que seja possível sustentarmos argumentação, então devemos ter direitos". Essa parece ser a leitura que muitos têm desse trecho. Se fosse esse o caso, estaria aí realmente uma demonstração da necessidade da capacidade argumentativa para se ter direitos: de fato, aqueles incapazes de sustentar argumentação não precisariam de direito algum, se é pra possibilitar argumentação que eles servem, Mas a ética argumentativa não propõe direitos "para que seja possível a argumentação"; o que foi demonstrado é que precisa-se de direitos para sobreviver e que esses direitos são válidos porque são inegáveis (por meio da argumentação) por qualquer um que esteja vivo.

Aliás, como bem apontado por Rafael Ritter, com base nesse trecho poderíamos formular um primeiro silogismo capaz de efetivamente demonstrar os direitos de propriedade dos animais (o silogismo definitivo está no próximo artigo):

1- O fato de que alguém está vivo pressupõe a validade do direito de propriedade sobre outras coisas; 
2- Ninguém que está vivo pode argumentar o contrário de 1;
(Observe que, em 1, é o fato de que alguém "está vivo" que pressupõe o direito de propriedade; não o fato de que alguém "é capaz de argumentar que está vivo" que pressupõe o direito)
3- Animais estão vivos;
4- Portanto, a validade da propriedade para animais está pressuposta (e ninguém pode argumentar contra isso).

Conclusão e uma definição mais consistente de direito no contexto da ética argumentativa
Expressões como "ter direitos" mais confundem do que ajudam, e parecem vícios de linguagem herdados do pensamento jusnaturalista, o qual enxergava direitos inscritos na "natureza" dos seres. Mas direitos não são atributos que seres têm ou deixam de ter em suas naturezas.

A ética lida com a questão do que é o justo. A abordagem da ética argumentativa, mais especificamente, trata de quais normas são justificáveis. Dessa forma, o que alguém "tem" de direito é apenas um reflexo das coisas que outros não estarão justificados se fizerem em relação a ele.

Assim, o direito de autopropriedade significa simplesmente que ninguém conseguiria justificar uma norma que invalidasse o direito exclusivo de controle de alguém sobre o corpo, por exemplo. Na medida em que é impossível justificarmos argumentativamente agressão, se não podemos fazer nenhuma reivindicação melhor de uso do que o primeiro uso de outros, etc. é nisso que se constituem os direitos desses outros.

Nada disso deixa de valer conforme características destes outros, uma vez que eles sejam os usuários de algo, a norma é clara (e, segundo Hoppe, inegável): o primeiro usuário é o primeiro dono. Dessa forma, e resumindo: se Hoppe diz que "o direito de controle sobre o próprio corpo é inegável", minha alegação nesse artigo é que esse direito é inegável para animais pelo mesmo motivo que é inegável para humanos: porque qualquer um que tentasse negá-lo cairia em contradição.



Expus ao professor Hoppe a crítica com base nas ideias deste artigo. Você pode ler a interação que tivemos, via email, neste post: Hans-Hermann Hoppe vs Luiz Fabrette - Sobre Ética Argumentativa e não-argumentadores


Por fim, na empreitada de negar direitos a animais, o último recurso será afirmar que animais então não controlam ou não fazem uso de seus corpos. Esse será o argumento debatido no próximo post.


_____________________________________________
[1] e [3] Extraídos de A ética e a economia da propriedade privada.

[2] Extraído de Comment on R.P.Murphy’s & Gene Callahan’s Critique of Hans-Hermann Hoppe’s Argumentation Ethics.

Posso ser funcionário público sendo libertário / liberal?


Muita gente tem essa dúvida, então vão aí 6 pontos para respondê-la:

1- Você deixar de ocupar o cargo público não fará ele desaparecer. Apenas será ocupado por outro. Sua recusa não vai aumentar nem diminuir o estado;

2- Essa outra pessoa que entraria é, em tese, menos capacitada que você (afinal ela teria ficado fora das vagas): ao assumir a vaga, você está preenchendo o estado com pessoas mais eficientes que poderão prestar um serviço melhor. Isso é bom para o público;

3- É melhor encher o serviço público de liberais que se sentem culpados e tentam ser o mais eficientes possível do que de estatistas que se acham no direito de serem folgados e burocráticos;

4- Se o seu cargo consistir basicamente em seguir regras inúteis e burocráticas que atrapalham a vida das pessoas, a não ser que você pretenda trabalhar sabotando esse sistema, então é mais coerente procurar um cargo cujas atividades sejam equivalentes ao que você faria se fosse na iniciativa privada (a maioria dos cargos desempenha atividades assim, como ser atendente bancário, professor, bibliotecário...);

5- Você pode, no mínimo, contribuir para o estado não aumentar, mesmo sendo servidor público: Se você entrar no serviço público e propuser formas de executar o trabalho de forma mais eficiente, a quantidade atual de funcionários vai desempenhar o trabalho com folga - já que funça nunca é demitido - mas isso significa que não haverá motivos para os chefes ficarem requisitando mais servidores. Ou seja, você fez sua parte para o estado não crescer. 

6- Só, por favor, não vá aderir a greves no serviço público. Se está insatisfeito com a remuneração, troque para um emprego que te pague o que você julga que seu trabalho vale, oras.

Meritocracia, capitalismo e socialismo

Meritocracia
A ideia central quando se fala em "meritocracia" é um sistema que recompense as pessoas conforme o mérito delas. E o que exatamente seria "mérito"? A definição de "mérito" no Michaelis nos diz "o mesmo que merecimento" e "merecimento" nos leva a "qualidade que torna alguém digno de prêmio ou castigo".

E tudo isso nos leva à seguinte conclusão: nenhuma! Continuamos sem saber: qual é a qualidade que torna alguém merecedor de receber alguma coisa boa?

O universo em si não parece nos dar alguma dica de que qualidade seria essa, Pessoas obtêm os mais diversos resultados a partir das mesmas qualidades. Uma pessoa pode trabalhar duro e uma seca simplesmente arruinar seu trabalho; outra pode não se esforçar em nada e ganhar na loteria; uma terceira pode viver a vida toda só fazendo o bem e acabar sendo atropelada.

Como Dr. House enunciou brilhantemente em um episódio da série:

"As pessoas não ganham o que elas merecem. Elas ganham o que elas ganham.
Não há nada que algum de nós possa fazer sobre isso."

O universo não é meritocrático no sentido de "trazer coisas boas na medida em que alguém mereça coisas boas". (Ou pelo menos ninguém conseguiu identificar ainda o que significa "merecer" na ordem natural das coisas).

Nós geralmente não aceitamos a segunda parte do que House diz, e tentamos fazer alguma coisa sobre, propondo e tentando viver sob sistemas que recompensem o que consideramos meritório. Meritocracia é, portanto, um sistema humano, artificial. Sendo assim, nenhum sistema (nem capitalismo, nem socialismo, nem nenhum outro) vai conseguir implementar esse ideal de "recompensar o mérito" 100%.

Mas afinal, o que consideramos meritório?

No sentido mais popular, considera-se merecedor de alguma coisa quem tenha se esforçado por ela. Assim, se uma pessoa ganha um bom emprego apenas por ser filho de alguém, dado que "ser filho de alguém" não representa esforço próprio nenhum, dizemos que esse tipo de contratação não é meritória. Porém esta lógica já não parece muito adequada quando, num vestibular, um candidato que estudou 3 horas por dia por um método eficiente consegue a vaga enquanto um candidato que estudou 12 horas por dia com baixo aproveitamento disso não consegue a aprovação. Certamente o segundo se esforçou muito mais, fez muito mais força que o primeiro, mas o primeiro ainda estava mais apto à vaga, porque tinha os conhecimentos necessários no fim das contas. Também não acharíamos que alguém que passasse 27 horas cavando um buraco e depois outras 20 horas tapando-o fosse digno de qualquer prêmio, apesar do grande esforço que ele sem dúvida empenhou nesta tarefa.

Assim, vê-se que o "esforço" em si não é exatamente a qualidade que torna alguém digno de recompensas.

Com as considerações acima pretendo apenas mostrar que a ideia popular de "esforço" é insuficiente; não pretendo neste post encontrar a qualidade única que deve compor a meritocracia — se é que há uma, na verdade. Em vez disso, gostaria de avaliar quais são as qualidades que dois sistemas, capitalismo e socialismo, recompensam e qual dos sistemas promove algo mais alinhado com o que desejamos.

Meritocracia e Capitalismo
O capitalismo é baseado na propriedade privada, o que significa que a única forma de obter algo de alguém é voluntariamente, através de trocas que ambas as partes concordem em efetuar.

A atitude meritória no capitalismo, isto é, a qualidade que tende a gerar recompensas neste sistema, portanto, não é "suar a camisa" nem "fazer força". No capitalismo o mérito está em melhor satisfazer as necessidades dos outros, ao produzir coisas que eles desejam e pelas quais estão dispostos a te remunerar para obterem.

Um sujeito vai se tornar rico no capitalismo na medida em que disponibilizar às pessoas bens ou serviços com alta produtividade. Num sistema capitalista, na verdade, a produção de riquezas se torna um componente fundamental do mérito em vez do mero "esforço". Usar uma máquina que cava um buraco em 30 segundos traz mais recompensa do que cavar o mesmo buraco com uma colher de plástico levando 36 horas de puro esforço — o que reflete o fato de que nós valorizamos mais é a solução do problema em si.

Meritocracia e Socialismo
Para discutir quais seriam as implicações de um sistema socialista na meritocracia, me referirei a algumas das propostas do socialismo, enunciadas pelo colega Ricardo Nery.

"o socialismo vai eliminar ou mitigar o direito de herança. Isso impede que alguns indivíduos, sem mérito pessoal (mas apenas pelo fato de terem nascido em família rica), partam em vantagem sobre outros."

O problema aqui é que para evitar a "injustiça" da herança o socialista está dizendo, precisamente, que aquele que construiu a fortuna não é livre para fazer com ela o que quiser — porque ele não pode passá-la aos filhos ou a quem quiser, nem depois de morto (e supõe-se que nem antes, ou a regra seria burlada de forma óbvia). Deixando de lado o absurdo prático de proibir a transferência de propriedade, mesmo assim isso já destrói totalmente a questão do mérito que o socialista queria ajustar, pois a fortuna é a recompensa pelo mérito de quem a construiu, e proibir a pessoa de dispor livremente de sua recompensa é destruir a noção de recompensa, e sem recompensa não há meritocracia.


"O socialismo também estabelecerá um só sistema de educação - sob controle estatal -, vedadas outras formas de educação diferenciadas para quem pode pagar mais. Isso impõe maior igualdade de condições entre os cidadãos."

Do ponto de vista de uma sociedade que deixe os resultados vinculados só ao esforço pessoal, eliminando o "resto" o máximo possível, esse até faz sentido, embora na prática esse ideal de igualdade seja inalcançável. O problema seria sob outro aspecto: como é que o mérito seria avaliado na hora de eleger a melhor forma de educar, na hora de FORMULAR e ATUALIZAR o programa dessa educação estatal? pois se não haveria competição, como poderíamos descobrir qual das alternativas traz melhores resultados? E se criássemos turmas para pôr a teste os métodos, então já teríamos pessoas sendo formadas diferentemente em nome de ninguém ser formado diferentemente.

No fim das contas, talvez nós até tivéssemos um sistema bem igualitário, mas a igualdade típica das experiências socialistas: todos igualmente ruins e estagnados. Não, obrigado.

"Além disso, o socialismo elimina o elemento de risco inerente na livre iniciativa. Sorte não é mérito. E no capitalismo o elemento "sorte" entra na conta do sucesso, mesmo que não isoladamente."

Ainda existe risco e sorte no socialismo. O que ele poderia oferecer nesse aspecto é distribuir a conta dos fracassos dentre todo mundo. Por exemplo, se uma seca destrói a plantação de milho, em vez de só quem plantou o milho arcar com o prejuízo, a conta é dividida dentre todos.

Mas aí vem o problema: se o cara que planta milho não deve pagar porque não tem culpa, QUANTO MENOS EU!

"E o que dizer então da possibilidade de viver do capital (ao invés do trabalho)? Viver de rendimentos, investimentos, aluguéis, etc. O socialismo acaba com tudo isso."

Rendimentos, alugueis e investimentos precisam de poupança para serem obtidos. E poupança é um sacrifício. Você se abstém de consumir para poupar. Este dinheiro parado não rende nada, você só pode "viver dele", sem o estar consumindo diretamente, na medida em que disponibiliza o que você poupou para outros, que não pouparam, poderem usar essa poupança para produzirem. É com parte do que eles produzirem que eles poderão te pagar os tais juros do qual você pretende viver. A atividade de poupança é, portanto, essencial, bela e moral para o desenvolvimento econômico e merece ser recompensada — como de fato é no capitalismo.

Conclusão
Podemos não saber qual é a qualidade que merece recompensas, se é que existe alguma única. Mas pudemos ver ao longo desse post que, não só não fica claro que tipo de qualidade o socialismo promoveria, como parece evidente que ele inclusive nem consegue ser um sistema que mede nem que permite a existência de prêmios para qualidades.

Por fim, a crítica de que o capitalismo não é meritocrático só se sustenta quando supomos que a qualidade do mérito é o "esforço bruto", mas também vimos que não há bons motivos para achar que "esforço" sozinho é uma qualidade meritória.