Falácia do Porta-Voz Transparente


Na verdade não sei se é exatamente uma "falácia" no sentido mais estrito, mas trata-se de um erro de raciocínio, ou de um modo de falar que induz a tal erro ou o camufla.

Tal falácia ocorre quando alguém, ao manifestar uma ideia, omite os intermediários envolvidos. O falante omite a si mesmo e a outras camadas de sujeitos envolvidos no processo, e suas consequentes particularidades, transmitindo a informação de forma direta, como se ela fosse um dado puro — daí o nome, ele torna todos os intermediários (porta-vozes) transparentes. Exemplos:

1- declarar "esta doença não tem cura", quando na verdade o caso é "Eu não conheço nenhum trabalho de alguém que tenha relatado observar um meio de cura para essa doença";

2- dizer "você está negando os fatos/a Ciência/a História etc" quando na verdade temos "você está negando o que eu digo que é conforme os fatos/Ciência/História". *

3- expressar-se simplesmente como "na lei divina matar é errado", quando na verdade a descrição mais completa do caso seria "Eu li alguém que disse que Deus teria dito que matar é errado";

(Esta falácia ocorre praticamente sempre que se lida com teístas. Eles sempre se expressam referenciando diretamente Deus ("Deus diz que...", "Para Deus...") mas na verdade a construção correta é "eu acho que Deus acha que..." ou, em muitos casos, "estou dizendo pra vocês o que eu entendi ao ler um livro no qual alguém escreveu que deus disse que..." — isso supondo a fala de um padre: o fiel presente à missa ainda teria que acrescentar "estou dizendo pra vocês o que eu entendi do que o padre disse que ele entendeu ao ler um livro no qual alguém escreveu que deus disse que...").

4- expressar-se como "sou uma autoridade na obra de Michel Foucault", quando na verdade a descrição completa é "Tenho um diploma fornecido por pessoas dizendo que elas entendem que eu entendi Foucault da mesma forma que elas entenderam (e elas entendem que entenderam conforme Foucault queria ser entendido)";

Suponho que por brevidade na comunicação este tipo de construção continuará sendo omitida e em muitos casos isso não interferirá na discussão, mas é importante ter em mente essa questão para identificar os casos em que ela é relevante.

Ainda, há sempre um primeiro nível de porta-voz omitido: a rigor, toda asserção poderia começar com "eu acredito que" ("Choveu ontem" na verdade é "Eu acredito que choveu ontem", por exemplo) mas eu acredito que seja razoável manter tal omissão e dá-la como implícita por padrão, reservando esse tipo de explicitação apenas para quando desejarmos ressaltar um estado de dúvida ou de pessoalidade naquilo que estamos transmitindo.

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 *Relacionado também à Falácia de Apelo a Autoridade Abstrata.