Ética e direitos animais (7) - Os incapazes humanos

Pelo sono do filhote e pela cara da criança, o fotógrafo deve ter dito "classe ontológica" na hora da foto
Durante as discussões Éticas é comum recorrermos à comparação de animais, enquanto incapazes, com os humanos também incapazes. A estrutura geralmente é a seguinte, propondo a implicação de que:
"Se o argumento x é verdadeiro, então humanos incapazes também não têm direitos".
Exemplos de humanos incapazes são bebês, deficientes mentais e idosos senis, enfim, qualquer ser humano que sofra de uma incapacidade, temporária ou permanente, parcial ou total. Esta incapacidade seria em relação à posse ou desempenho de um atributo que alegadamente torna alguém sujeito de direitos. Por exemplo, o argumento x poderia ser que "argumentar dá direitos" e a abordagem seria dizer "mas deficientes mentais, que não argumentam, não teriam direitos então". O objetivo, naturalmente, é que o proponente do argumento x, por rejeitar a implicação "humanos incapazes não têm direitos", volte atrás no argumento x que tem essa implicação.

Neste post estudaremos esta abordagem, e principalmente os argumentos usados para tentar desfazer tal implicação.

Em primeiro lugar, essa implicação por si mesma não leva o argumento x a cair numa contradição, absurdo lógico, nem impossibilidade; essa abordagem funciona apenas à medida que a maior parte das pessoas toma os direitos dos incapazes humanos como pressuposto. Por isso, aquele que apontar essa implicação como se fosse um contraponto definitivo ao argumento x estará incorrendo numa falácia: poderia muito bem ser o caso de que o tal argumento x é verdadeiro, incapazes humanos infelizmente não tenham direitos mesmo, e fim da história. O apontamento de tal implicação, portanto, deve ser usado apenas como um sinal de alerta a partir do ponto em que os direitos dos incapazes estejam bem fundamentados, e não como um contra-argumento em si mesmo.

O proponente do argumento x, por outro lado, se esforçará para tentar quebrar a implicação. Isto é, ele tentará permanecer com o argumento x e arrumar algum motivo para que ele não implique na perda de direitos de incapazes humanos — apenas na perda de direitos de quem ele não quer que os tenha, geralmente os animais.

A seguir, analisaremos algumas destas propostas para quebrar a implicação.

INDIGNAÇÃO COM A COMPARAÇÃO
Esta é comum não só na discussão Ética, mas em qualquer caso em que se faça uma comparação desfavorável ao interesse de alguém. Indignado, ou manifestando desdém, o sujeito dirá que é um absurdo fazer esta comparação porque obviamente isto é diferente daquilo — no nosso caso, "obviamente humanos são diferentes de animais".

O problema é que não adianta meramente apontar alguma diferença para invalidar uma comparação, porque qualquer comparação necessariamente se dará entre diferentes; se fossem iguais não seria comparação e sim tautologia. A questão para recusar comparações, portanto, não é dar chilique por haver alguma diferença, e sim justificar por que ela é ou não importante.

(Evitarei escrever uma comparação aqui reforçando o ponto deste item para evitar que o indignado com comparações entre em loop, ok?)

APELO AO FUTURO - POTENCIAL
A proposta aqui seria, por exemplo, que um indivíduo não cumpre, em ato, o argumento x, mas é um cumpridor em potencial. Primeiramente, tal argumento só serve para limpar a barra de bebês e algumas condições temporárias ou supostamente curáveis de deficiência mental; idosos senis e deficientes mentais permanentes, que não dispõem portanto de potencial nenhum, permaneceriam descartados. Agora, do que importa ser um potencial alguma coisa? Potencialidade significa que o sujeito não é capaz agora, mas pode vir a ser no futuro. Ora, se a premissa é

(P1) Só tem direitos quem é capaz de x;
e (P2-a) fulano não é capaz de x;
a conclusão só pode ser (C-a) fulano não tem direitos, 

Se (P2-b) fulano não é capaz agora, mas tem o potencial de vir a ser futuro;
a conclusão disso é (C-b) fulano não tem direito agora, mas tem potencial de vir a ter futuro.

Se tem direito quem tem capacidade, quem tem capacidade potencial tem direitos apenas em potencial também, e não a estranha (C')fulano não é capaz agora mas pode vir a ser no futuro então já vamos tratá-lo no presente com se futuro fosse.

APELO AO PASSADO
Na tentativa de salvar os idosos senis e aqueles que tenham adquirido suas incapacidades posteriormente, pode-se propor também que a capacidade uma vez possuída geraria direitos daí em diante, mesmo com a sua cessação posterior. Novamente, os deficientes mentais permanentes, que nunca foram nem nunca deixarão de sê-lo, continuam de fora do argumento.

De qualquer forma, este apelo recorre à mesma trapaça temporal do anterior:
Se (P1) Só tem direitos quem é capaz de x;
(P2) fulano não é mais capaz de x;
a conclusão só pode ser (C) fulano não tem mais direitos.

e não a estranha (C')fulano não é capaz agora mas já foi no passado e vamos fazer de conta que ele é o que não é mais então.

Apesar disso, dentre as 3 propostas analisadas neste post esta é a menos ruim, pois existe pelo menos um aspecto no qual ela pode fazer algum sentido. A ideia de que as manifestações de vontade gerem implicações futuras é na verdade bastante razoável. Porém, se direitos são criados pelas deliberações passadas, é de se argumentar que a cobertura de direitos de tal indivíduo só ocorreria à medida exata das definições que ele tenha deixado expressamente — rezemos para que ele não tenha esquecido de explicitar nada importante. Mas em todo o caso fica o alerta de que esta proposta continua deixando de fora aqueles que não tiveram um momento de capacidade, como é notavelmente o caso de bebês e até mesmo crianças, além dos deficientes mentais que nunca tenham passado por períodos sem deficiência.

APELO AO COLETIVO - CLASSE ONTOLÓGICA
Se por um lado esta proposta é a mais ambiciosa porque teria o poder de finalmente salvar todos os incapazes humanos —e apenas eles!—, por outro lado é a que falha mais miseravelmente em cumprir o objetivo.

O argumento é basicamente que todos estes incapazes humanos teriam direitos ...por serem humanos. Ou dito de forma mais pedante, porque eles "pertenceriam à mesma classe ontológica".

Bonito, não? Pena que "classe ontológica" é um termo que, no contexto que estamos discutindo, quer dizer
Nada. Nadinha. Rigorosamente nada.

Vejamos. A ontologia estuda as características do ser, o que tem na essência de alguma coisa que a diferencia de outras e a põe na mesma categoria de algumas. Por que esses objetos aqui nós consideramos pertencentes à classe "caderno" e esses aqui nós julgamos "agenda"?

Uma área interessantíssima da filosofia.

Só que TUDO pertence a uma classe ontológica. Dizer que alguma coisa é assim ou assado "por causa da classe ontológica" é simplesmente dizer "é assim porque ele pertence a uma classe que tem uma característica que a diferencia das outras" — mas isso pode ser dito de QUALQUER COISA! Ontologicamente, TUDO tem "uma característica que a diferencia das outras".

Que característica é essa? Por que ela é relevante para o que se está sendo discutido? Esse é o ponto que precisa ser demonstrado, e que o mero balbuciar da expressão "pertence à classe ontológica" é incapaz de fazê-lo.

Além do mais, existe um coletivismo sem-vergonha aí. O caso dos incapazes é exatamente que eles não possuem uma característica comum à classe ontológica — uma característica, aliás, que foi proposta como a essencial para se ter direitos. (O caráter arbitrário do raciocínio é evidente, porque humanos teriam direito APESAR de não possuírem tal característica, já os animais não teriam POR CAUSA de não possuírem tal característica).

Pois bem, eles não possuem essa característica essencial, mas de alguma forma devemos tratá-los como se a tivessem, só porque uma grande quantidade de outros indivíduos da classe têm tal característica. É a velha história: "fulano não é racional, mas devemos agir como se ele fosse porque outros fulanos que compartilham genética com ele são". Como funciona essa transmissão coletiva? Só Deus sabe e nenhum coletivista jamais conseguiu explicar.

Note-se também que o coletivismo em questão recorre a um recorte da classe ontológica apenas num nível conveniente. Os seres não pertencem a apenas uma classe ontológica, há classes acima das quais ele participa, e há níveis abaixo, participando ele de alguns e não de outros. Todo pertencente, por exemplo, à classe "humano" é também um membro da classe "animal" e também da "seres vivos", bem como pode ser um integrante de classes subordinadas ("abaixo") como "americano" ou "negro" e tantas outras subdivisões. Uma delas, inclusive, é justamente a classe "capazes de argumentar", ou "de raciocinar", ou seja lá o que esteja sendo alegado como o requisito da vez. A rigor, se direitos são apenas para os capazes esta é a classe ontológica que dispõe de tais direitos; o argumento do coletivista ontológico é subir algum(ns) nível(is) acima nas classes e estender os direitos a uma classe específica de seu interesse, os humanos, o que obviamente é mera arbitrariedade disfarçada com terminologia chique.

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