Ética e direitos animais (8) - Direitos, Deveres e Reciprocidade


Um dos argumentos mais comuns na discussão Ética é a ideia de que direitos vêm amarrados com deveres, ou, em outras palavras, que só pode ter direitos quem for capaz de deveres.

Um contra-exemplo imediato a essa ideia é o caso dos incapazes humanos, como bebês ou pessoas senis, as quais apesar de não serem capazes de deveres ainda são consideradas sujeitos de direito. A estratégia para compatibilizar a vinculação direitos-deveres com os direitos de tais incapazes, tentando manter ambos, seria falar da "potencialidade de deveres", por exemplo, mas no post passado discutimos por que estratégias como essa não se sustentam, e portanto não podem salvar a situação. Mas, como também vimos no post passado, meramente apontar que indivíduos x ou y seriam deixados de fora de direitos não é argumento suficiente para provar que eles tenham direitos. Por isso, nesse post vamos discutir qual a teoria correta para o caso.

De fato, existe uma relação entre direitos e deveres, e talvez ela é que esteja por trás da vinculação direitos-deveres tentada pelos anti-animais: realmente, "a todo direito correspondem deveres", Mas esta relação está descrita de forma incompleta. Quando dizemos que o indivíduo A tem por exemplo direito de propriedade, isso significa que esse direito constitui um dever aos outros de não invadirem a propriedade de A. Assim a formulação correta é que "a todo direito do indivíduo A correspondem deveres aos indivíduos B, C, D..." — o que absolutamente não equivale à ideia pretendida de que “A só tem direitos se o próprio A for capaz de deveres”, nem pode fundamentá-la.

Os conceitos de "direito" e "dever" se aplicam sobre um mesmo fenômeno mas a posições distintas na relação. Quando cogitamos "direitos", estamos falando daquele que está sujeito à ação de alguém, aquele que é a vítima, que tem um interesse legítimo seu violado, aquele que é o paciente da ação. Já quando falamos em "dever" estamos olhando para aquele que promove a ação, o que viola interesses alheios, o agente. Desta forma, os atributos relevantes para cada posição são distintos e independentes.

Para que alguém se caracterize como agente moral, dado que só pode haver moralidade onde há escolha, é preciso avaliar se ele possui atributos relacionados à possibilidade de agir com impacto moral e de escolha nesse agir. Aqui sim é relevante a consideração de capacidades como "discernimento moral", "livre escolha", "racionalidade" — enfim o conceito de "capacidade jurídica" em geral. A avaliação destas capacidades é importante para a reprovabilidade da ação: é reprovável aquele que tinha discernimento e alternativas e ainda assim optou pela ação imoral.

Mas para que alguém se caracterize como paciente moral obviamente não podem ser as capacidades da agência moral que devam ser observadas, pois o juízo de reprovação é sobre o agente, não sobre o paciente. Ora, a posição do paciente moral é enquanto alvo, vítima da ação: o que cabe ser observado portanto é sua possibilidade de sofrer as consequências de ações morais, de ser afetado por elas. 

Querer exigir racionalidade até para caracterizar alguém como paciente moral é como dizer que só pode ser passageiro de um veículo quem tiver capacidade de dirigi-lo também.


A possibilidade de ser vítima de uma ação independe das capacidades de agência moral. Um bebê, por exemplo, não é capaz de discernimento moral, de fazer pactos, nem de escrever tratados filosóficos sobre direitos, mas é capaz de sofrer violações, e é só isso que importa para caracterizá-lo, apesar de não ser um agente moral, ainda assim como sujeito de direitos. Vemos portanto que não cabe vinculação entre agência moral e paciência moral, são atributos independentes. podendo haver dessa forma:
  • [a]seres que são agentes e pacientes morais (humanos capazes);
  • [b]seres que não são nem agentes nem pacientes (objetos inanimados);
  • [c]seres que são pacientes sem serem agentes (incapazes, sejam eles humanos ou animais); 
  • e até hipoteticamente [d]seres que sejam agentes sem serem pacientes (como seria o caso de um ser que fosse capaz de interferir em nossas vidas mas que fosse inatingível ou inviolável em seus interesses: tal ser exemplificaria um agente moral que não é paciente moral).

Assim, quando A age sobre B, devemos avaliar em A a agência moral e em B a paciência moral, não vice-versa e, mais importante, não a agência moral em ambos. Fazer isso nos levaria ao estranho raciocínio em que a pena de A por agredir B depende não da reprovabilidade da conduta agressiva de A, e sim se a vítima B é passível de punição ou não.

MAS E A RECIPROCIDADE?
Se por um lado é incabível a ideia de definir a pena do agressor a partir da possibilidade da vítima em ser punível, por outro lado a alternativa proposta aqui também não violaria um princípio ético importante: o da reciprocidade? Pois o que estamos dizendo aqui é, literalmente, que se A agride B e encontramos a agência moral em A ele deve ser punido; mas se B agride A e não encontramos a agência moral em B ele não deve ser punido. Isto é, dada uma mesma ação, o capaz é punido por executá-la contra o incapaz, mas o incapaz não é punido por executá-la contra o capaz. Não estaríamos então diante de uma situação claramente assimétrica e portanto injusta? Os incapazes não estariam numa classe privilegiada?

Certamente há uma assimetria, mas apenas porque a condição dos envolvidos é assimétrica. A partir do conceito de justiça como tratar os iguais de forma igual, e também os desiguais de forma desigual, na medida de sua desigualdade, podemos entender que não há injustiça alguma no caso. Injusto seria (a)condenar os incapazes como se capazes fossem, ou (b)deixar de condenar os capazes como se incapazes fossem. O correto é dar a cada um o tratamento respectivo de acordo com sua condição. Sendo a condição dos incapazes a de serem pacientes morais e não serem agentes morais, o tratamento devido a eles é a proteção, enquanto pacientes, e a ausência de reprovabilidade, enquanto não-agentes morais.

Mas então na prática isso significa que A não pode agredir B, mas B pode agredir A à vontade? Na verdade não. Eticamente falando, nem A nem B podem se agredir. Agressão é errada de forma universal, para ambos. A diferença é apenas do ponto de vista da punição, do Direito Penal. O indivíduo A faz jus a penas propriamente ditas porque é capaz, era exigível dele observar deveres, e a pena pode desempenhar sobre ele suas funções. B não faz jus porque não é exigível dele a observância de deveres, e a pena simplesmente não teria efeitos sobre ele — mas ainda assim isso não significa que B pode fazer o que quiser: ainda é lícito exercer legítima defesa contra B, e adotar medidas como afastá-lo do convívio para sua própria segurança e dos demais. Nada disso significa, note-se, uma autorização para ir lá e agredir B em primeiro lugar e independente de qualquer coisa nem na ausência de seus direitos.

Esta é a teoria correta sobre direitos e deveres, e que não incorre em falhas lógicas, arbitrariedades nem ampliações indevidas.

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