Por um libertarianismo libertário


Se você acordasse 50 anos no futuro numa sociedade em que praticamente todas as pessoas vivem sob regras altamente restritivas, como toque de recolher, proibição do fumo, limitações à liberdade de expressão, limitações ao porte de arma, etc etc... você diria que esta é uma sociedade libertária?

Faria alguma diferença se eu te dissesse que estas regras anti-libertárias foram aprovadas por uma "autoridade competente"?

Então por que se eu trocar o nome dessa "autoridade competente" para "proprietário legítimo", isso tornaria as coisas melhores?!

Por mais estranho que pareça, para o grupo dos anarcocapitalistas, por alguma razão inexplicável, esta alteração de nome faz com que tudo esteja bem.

O proprietarismo nem um pouco libertário
O anarcocapitalismo se propõe a ser o resultado de uma ética que encontre e promova regras libertárias através da razão, mas na prática tudo que ele tem a oferecer é uma "moralidade de crachá". Eles não estão interessados em realmente avaliar as regras e suas consequências, mas apenas uma única questão: "quem impôs a regra?". Parecem, aliás, os positivistas que tanto criticam: só que em vez de olharem a "autoridade competente", olham se é o tal "proprietário legítimo". Só muda o nome, mas é essencialmente a mesma busca pelo crachá de quem emanou a regra.

Na frase "o estado criou uma lei ruim" o grande problema para o ancap não é a lei ser ruim, mas sim ter sido o estado.

Você pode comprovar isso com o exemplo clássico do "direito de dirigir bêbado".
O artigo Pelo direito de dirigir alcoolizado cita 4 argumentos pelos quais a proibição seria absurda. Segundo eles, tal lei:
a) proíbe algo que não necessariamente vai causar agressão
b) cria dificuldades práticas de medição. (Lei arbitrária, imprevisível e dependente do julgamento de policiais e técnicos)
c) é ineficiente em alcançar os objetivos desejados
d) impõe fiscalização de pessoas que não fizeram nada suspeito.

Talvez você concorde com os 4 argumentos, talvez não, mas o ponto que quero destacar é: se esses 4 itens forem válidos, eles valem tanto se for o estado quanto se for a iniciativa privada aplicando. Um agente de trânsito estaria "fiscalizando com instrumentos pouco confiáveis pessoas insuspeitas que não necessariamente vão causar agressão", esteja esse agente trabalhando sob o estado ou sob a iniciativa privada. Se a proibição é uma lei absurda e anti-libertária, um libertário deveria ser contra ela independentemente de quem implementa. Certo?

Para os anarcocapitalistas, não. Se o estado disser que "não se pode dirigir bêbado nestas vias", o ancap verá aí uma "opressão terrível aos seus direitos naturais de cidadao pacifico crime sem vítima etc etc". Escreverá artigos e mais artigos, apelará às mais nobres teorias para condenar esta ação ...apenas para jogar tudo isso fora tão logo seja uma empresa privada dizendo igualmente que "não se pode dirigir bêbado nestas vias". Aí ele dirá "muito obrigado" e é capaz de ainda pedir pra tirar uma foto do carro sendo guinchado enquanto recebe a multa e posta no facebook, emocionado, sobre o quanto "o mercado se preocupa com sua segurança <3".

O mesmo vale para qualquer outra liberdade que ancaps achem que defendam. Liberdade de expressão? Negativo. Eles não são contra restrições à liberdade de expressão, mas apenas de restrições quando implementadas pelo estado — se for o sagrado proprietário proibindo a expressão, os "libertários" proprietaristas não verão problema algum.

Mais um exemplo:
No artigo Como é o policiamento de uma sociedade privada, Jeffrey Tucker escreve: 
"As regras de Atlantic Station são bastante estritas, mais do que eu imaginava que fossem. Há toque de recolher para adolescentes. Você não pode usar roupas obscenas ou de gangues. Você não pode portar armamentos. Não pode usar linguagem obscena. Não pode fumar. Não pode ser barulhento, fazer escândalos e ser vulgar. Você pode fazer caminhadas, desde que não saia correndo por aí feito um animal."

Reparou na quantidade de proibições? Mas pode ficar tranquilo porque, continua ele: "Se essas regras fossem impostas por um governo municipal, as pessoas estariam em seu direito de reclamar. Não é o caso aqui. E por quê? Porque se trata de propriedade privada e, portanto, seus donos determinam suas regras."

Aí sim, hein? So much freedom!!!!


Fique esperto quando ancaps posarem de defensores de alguma liberdade. Estes "libertários proprietaristas" defendem apenas a liberdade de o proprietário estabelecer qualquer regra que lhe der na telha, seja essa regra absurda, anti-libertária e com más consequências o quanto for.

Uma meia dúzia de "libertários proprietaristas" tenta a todo custo assumir a voz do movimento libertário como um todo. É nosso dever portanto garantir que o libertarianismo permaneça apenas libertário, e na prática, preocupado em garantir mais liberdade real a pessoas reais, promovendo um sistema em que todos possam desenvolver suas individualidades da forma mais completa possível, e não uma mera troca das justificativas dos crachás.

Por um libertarianismo libertário.

6 comentários:

  1. Concordo com a sua crítica ao "direito de dirigir alcoolizado", que é apoiado por péssimos argumentos e uma mentalidade de planejador central.

    Agora, imagine a seguinte situação:

    Uma mulher chega em casa, entra no quarto do marido e, vendo que as luzes estão apagadas, pergunta se ele está lá. Com voz baixa, ele responde:

    — Estou aqui, querida. Não precisa acender as luzes, venha logo!

    Ela obedece, e eles fazem amor.

    Faria alguma diferença moral para você se, em vez do marido, quem estivesse ali fosse um outro homem, — em outras palavras, o "proprietário ilegítimo" — fingindo ser o marido e se passando por ele?

    Parece claro que sim. Apesar de, aparentemente, a exata mesma ação ter sido executada, pode-se notar, portanto, uma óbvia diferença moral caso tenha havido alguma ilegalidade na aquisição da propriedade — embora desagradar feministas objetificando o corpo feminino pareça tentador, obviamente os órgãos genitais da mulher não pertencem diretamente ao homem, mas lhe é concedido acesso exclusivo a eles por meio da permissão da esposa.

    Um condomínio administrado por trabalhadores que ofertaram a sua mão de obra no livre mercado, oferecendo bens ou serviços que as pessoas valorizem, não é o mesmo, moralmente falando, do que um condomínio administrado por uma gangue de bandidos que sobrevivem da espoliação e de assaltos à mão armada contra inocentes e suas propriedades.

    A discussão está em reconhecer ou não o Estado como essa gangue; uma máfia que tem o direito fazer tudo aquilo que cidadãos comuns não tem, escondendo seus crimes atrás de covardes eufemismos. O que seria falsificação e fraude para mim e para você, para eles é simplesmente política monetária. O que seria roubo à mão armada para mim e para você, para eles é política fiscal. O que seria ameaça de sequestro e cativeiro seguida de ameaça de homicídio em caso de tentativa de fuga para mim e para você, para eles é lei, regulação e combate às drogas. O que para mim e para você seria genocídio e assassinato em massa, para eles é política externa e guerra.

    Além disso tudo, ainda temos talvez a diferença mais fundamental: a liberdade de associação. Caso uma empresa não esteja mais me agradando e eu prefira cancelar seus serviços e abandoná-la, muito provavelmente não serei arrastado da minha casa pelos capangas do dono da empresa até salas de estupro onde serei repetida e cruelmente brutalizado durante anos. Já com governos, não se pode dizer o mesmo.

    Mesmo que se tratasse de um serviço básico de cujas externalidades positivas fosse impossível eu não me beneficiar, e eu me recusasse a contribuir, ainda assim haveria, numa sociedade livre, maneiras muito mais pacíficas de resolução de conflitos do que a desumana solução estatal. O ostracismo, por exemplo, é uma poderosíssima ferramenta de imposição de regras sociais independente do uso da força, que era usada na antiguidade, mas que hoje não é permitida porque o governo proíbe a competição.

    Do mesmo modo que você não seria obrigado a pagar por segurança e manutenção das estradas, ninguém seria obrigado a fornecer energia, alimento, água e eletricidade nem para você nem para quem comercializa com você e lhe provê abrigo. Não obstante sua aparência individualista e egoísta, uma anarquia de mercado seria completamente interligada até nos mínimos detalhes.

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    1. O exemplo da esposa que é levada a erro serve para nos mostrar que, nas associações entre indivíduos, as permissões que damos a outros para interagir conosco podem ser dadas a apenas uma pessoa e não a outras. Mas não é esse o ponto que o post critica.

      O que o post está dizendo é no sentido de que uma ação como estupro, por exemplo, não poderia ser declarada legítima por ninguém, nem mesmo por um "proprietário legítimo" do local onde se pretende valer tal regra.

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  2. Qual outra forma melhor, mais justa(não objetivamente) de determinar se uma propriedade é legitima do que seguir essas duas leis:
    1-Primeiro apropriador
    2-Trocas voluntárias

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    1. A questão não é exatamente de legitimidade da propriedade, mas sim de o quanto a propriedade deveria poder autorizar uns a exercer poder e pressão sobre outros...

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    2. não entendi muito bem pelo texto até onde vc acha que deve ir, então fica a pergunta

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  3. Idem ao Renam, tb nao entendi...

    Ex: art n1 - é reconhecido o direito de propriedade"
    art n2 - a propriedade cumprirá sua "função social"

    Para que a norma seja univocamente reconhecida e respeitada, vamos precisar de uma imposição superior, seja de um estado ou de uma "declaracao universal dos direitos bla bla" paulatinamente aceita por seus associados.
    Devemos voltar a Hayek e a demarquia minarquista?

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