O universo amoral

"There is no spoon"
É um pressuposto bastante popular o de que vivemos num universo moral, ordeiro, e principalmente um universo no qual existem "Direitos Naturais". Esta concepção foi bastante valiosa para rejeitar a ideia que vigia antes, segundo a qual alguns homens, através do estado, (ou pior, declarando-se eles próprios o estado), poderiam fazer o que quisessem com os demais.  Nesse contexto os direitos naturais apareceram como algo que vinha antes do estado, algo da realidade a que ele próprio deveria estar subordinado.

A despeito desse inestimável valor, tal concepção não passa de uma fraude. Sem dúvida, é bastante conveniente enunciar a sua posição não como algo que você defende, mas sim como se fosse algo inquestionável e inescapável, algo inscrito na própria realidade do mundo. Dizer que algo é errado (ou certo) "por causa da natureza das coisas" ou "porque o mundo é assim" certamente parece ter mais força do que simplesmente dizer "porque eu acho".

O problema é que, se observarmos o mundo, não encontramos qualquer traço dessa alegada moralidade nele. Vejamos: suponha que alguém foi morto da forma mais covarde, imoral e pelo motivo mais fútil que você puder imaginar. As testemunhas deste ato foram apenas alguns pássaros e uma árvore. O que vai acontecer? Absolutamente nada. Os pássaros vão continuar piando, o corpo do sujeito morto será decomposto e adubará a árvore. Tudo do mesmo jeito que ocorreria se ele tivesse morrido, em vez disso, num tremendo esforço heroico. O sujeito que matou segue sua vida. Pode ser que ele seja atropelado no dia seguinte. Ou que ganhe na loteria e seja muito feliz. Ou que bata o dedão do pé na quina do sofá semana que vem. Quem sabe?

No que depender do universo, reinará a mais absoluta indiferença quanto ao ocorrido. Onde está a tal moralidade do universo? Onde está inscrito na realidade que "matar é errado"? Em lugar algum. Nada impede as ações imorais nem morais de ocorrerem: tudo conforme seria exatamente o esperado de um universo amoral.

Algumas pessoas poderiam contestar essa conclusão justificando a omissão do universo como um tipo de "respeito à nossa liberdade de escolha", mas esta é uma desculpa completamente esfarrapada. Não há, por exemplo, a menor dúvida de que vivemos num universo físico, material. E de fato leis da física jamais são sequer violadas. Mas se o universo está tão interessado em respeitar nossa liberdade de escolha, por que não podemos escolher ignorar a gravidade de vez em quando também, cometendo um ato "fisicamente errado"? Nada disso: leis físicas simplesmente não são quebradas jamais. Alguém que escolha agir contra as leis materiais apenas dará de cara na parede do mesmo jeito. Alega-se que isso acontece porque tais leis são de "tipos diferentes". Sim, leis físicas são de um tipo diferente: do tipo que existe - ao contrário das leis morais. Faz todo o sentido concluir que leis da Física existem objetivamente. Já as leis morais são quebradas o tempo todo — exatamente o que seria de se esperar de algo que não existe, que é produto apenas da nossa própria cabeça.

Moralidade, com seus certos e errados, só começa a aparecer a partir do momento em que alguém observa o ocorrido e esse alguém julga que tal tipo de ação não deveria ocorrer, que deveria ser desestimulada — consistindo geralmente esse desestímulo na ameaça de uma consequência negativa (como o bom e velho porrete) a ser imposta a quem incorrer na ação indesejada.

Não existe moralidade objetiva, ou ainda: não há fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral de fenômenos.

A percepção deste vazio moral pode ser perturbadora para várias pessoas.
Como escreveu André Cancian, entretanto:
Muitos, por preconceito, têm medo do “vazio da existência”, mas esse medo, em si mesmo, é algo completamente sem sentido, pois equivale a temer aquilo que não existe; o vazio não é uma ameaça positiva. Senão, vejamos: Não existe vida em Vênus. Alguém se sente aterrorizado diante dessa afirmação? Dificilmente. Não existem bancos em Marte. Alguém empalidece diante disso? Também não. Suponhamos, entretanto, que durante todas as nossas vidas houvéssemos trabalhado arduamente, acreditando que todo o nosso esforço seria convertido em dinheiro num banco em Marte. Agora sim nós nos sentiríamos ameaçados pela afirmação de que nesse planeta não há, nunca houve banco algum, pois vivíamos em função disso, acreditávamos nesse suposto dinheiro marciano como aquilo que dava sentido às nossas vidas.
Não é o nada, portanto, que nos aflige. O que incomoda é a descoberta do nosso equívoco, o nada onde acreditávamos que havia algo. Paciência, ninguém nos mandou inventar esse algo.

Outra preocupação comum frente a este vazio moral vem na forma de "espera aí, se matar não 'é errado' de forma absoluta, então quer dizer que está certo matar os outros? Você acha então que os nazistas não fizeram nada de errado?!".

Esse raciocínio, entretanto, é grosseiramente errado. Considere o seguinte: As cores são sensações geradas por nossos cérebros a partir de ondas eletromagnéticas que objetos refletem e nossos olhos captam. Estas ondas, entretanto, não são coloridas em si. Elas possuem atributos como comprimento ou frequência, mas nenhum atributo de cor. Um objeto azul não é azul de fato, mas apenas reflete determinadas ondas; essa determinada onda que nos faz ver o azul não é ela própria azul. Como na frase anteriormente dita: não há fenômenos coloridos, mas apenas uma interpretação colorida de fenômenos.

O erro da preocupação exposta equivale a, ao explicamos a uma pessoa que um objeto não é, de fato, verde, ela achasse que com isso estamos dizendo que ele é azul, ou de alguma outra cor. Não, estamos dizendo que ele simplesmente não é uma coisa nem outra.

Da mesma forma que o vazio de cores não tem qualquer implicação positiva, o vazio moral também não. Assim, o fato de uma ação "não ser errada" simplesmente não implica que "seja certa". Apenas não é uma coisa nem outra.

E também não implica que devemos executá-la. Por exemplo, ao ser informado de que pular na cama não é uma ação objetivamente errada, isso significa que você deve imediatamente começar então a pular na cama? Não. Só significa que querer impedir alguém de pular na cama alegando que isso seja um erro, uma terrível violação a uma suposta natureza acolchoada do mundo seria um apelo a algo que não existe — e o mesmo vale inversamente: dizer que a natureza acolchoada do mundo nos diz que é certo pular na cama também seria uma alegação baseada numa ilusão.

Lamentavelmente, este é o caso de muitas premissas que autores libertários têm usado. Apela-se a todo tipo de "naturezas intrínsecas", e "verdades morais": tudo balela, que serão comentadas em mais detalhes em artigos posteriores.

...mas então, uma vez que abandonemos estes fundamentos inexistentes, estaríamos condenados a não poder falar mais nada sobre questões morais? Estaríamos fadados a um relativismo normativo, sem base nenhuma para apoiar nem rejeitar, por exemplo, o assassinato? Não necessariamente. Só significa que vamos precisar achar um fundamento real. Esta questão será desenvolvida ao longo dos próximos artigos deste blog.

Abandonemos estas muletas e comecemos um Libertarianismo a partir do Nada.

6 comentários:

  1. Incrivel o seu artigo, li este artigo em inglês e estou refletindo mais sobre essa questão no libertarianismo: https://medium.com/@mormo_music/moral-nihilism-for-libertarians-a79218546895
    Tem recomendações de artigos, livros ou videos que falem sobre isso?

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  2. Direito natural (da expressão latina ius naturale) ou jusnaturalismo é uma teoria que procura fundamentar o direito no bom senso, na equidade e no pragmatismo. Se você quer viver em sociedade deve aceitar alguns direitos, e esses são iguais em todas as sociedades, independente de sua origem, Natural aqui não quer dizer a natureza é justa. Natural é que para uma sociedade progrida ela vai ter que esses direitos, independente de sua origem

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    1. Entao pq as sociedades que deram certo hoje negam o direito de propriedade aplicando impostos e as que respeitaram esse direito, islandia e irlanda medieval, cospaia etc não deram?

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  3. Tipo vida, propriedade e liberdade, mesmo o socialismo ter sido tentado em diversos lugares ele nunca deu certo por que negam esses direitos

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  4. exatamente, vai contra a natureza da ação humana, é anti-ético.

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  5. É que apesar de haver um enorme freio no desenvolvimento, por comta do estado, o mercado ainda sobrevive, o estado é um parasita, vai matando o hospedeiro aos poucos.
    Impostos são sempre errados, por ir contra o direito de propriedade, mas o estado pode fazer errado pq ele é anti ético.

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