Ética e direitos animais (4) - Resposta a Molyneux


Stefan Molyneux é o autor do livro Universally Preferable Behaviour (UPB), ("Comportamento Universalmente Preferível"), no qual expõe uma base ética popular entre os libertários e faz alguns comentários no assunto dos direitos dos animais. É o que vamos analisar neste post (você não precisa já estar familiarizado com o UPB para acompanhar esta discussão).

Na página 91 de seu livro, Molyneux escreve:
"Não temos tempo suficiente aqui para debatermos a questão dos direitos dos animais, mas podemos pelo menos lidar com a proposição moral: "é mal matar peixes". 
Se é mal matar peixes, então o UPB diz que qualquer um ou qualquer coisa que matar o peixe é má. Isso incluiria não apenas os pescadores, mas os tubarões também - uma vez que se matar peixe é mal, nós expandimos nossa definição de "atores" éticos para incluir a vida não-humana.
É claro que os tubarões não têm a capacidade de se abster de matar peixe, uma vez que eles são basicamente máquinas de comer com barbatanas.
Assim, acabamos no problema lógico do "mal inevitável", ou de ser "inevitavelmente mau". Se é mal matar peixes, mas os tubarões não podem evitar matar peixes, então os tubarões são "inevitavelmente maus".
No entanto, como discutimos acima, onde não há nenhuma escolha - onde a evitabilidade é impossível - não pode haver moralidade. Assim, a proposição "é mal matar peixe" tenta definir uma moralidade universal que inclui situações não-morais, o que não é suportado logicamente."
O argumento que Molyneux faz até aqui não nos leva à conclusão de que "matar peixe" é uma situação amoral, mas apenas que TUBARÕES, enquanto máquinas sem escolha, não poderiam ser considerados maus por matarem peixes. Mas e os PESCADORES que ele citou e depois "esqueceu"? Eles têm escolha, então não estão impedidos de serem considerados maus por matarem peixe.

Ou seja, tudo que Molyneux nos diz é que tubarões não podem evitar matar peixes, e não que "matar peixe" é necessariamente, sempre, inevitável para todos. Podemos expressar tal tentativa de escusar os humanos de matarem peixe assim:
1. Não pode haver moralidade onde não há nenhuma escolha
2. Tubarões não têm nenhuma escolha em relação a matar peixes
3. Logo, não podemos considerar como maus tubarões nem humanos que matem peixes.

Obviamente, a inclusão de "humanos" em (3) é totalmente infundada.
"Além disso, a palavra "peixe" permanece problemática na formulação, uma vez que é muito específica para ser universal. A reformulação adequada para o UPB é: "é mal para as pessoas matarem organismos vivos".
Se, no entanto, matar é mal, novamente enfrentamos o problema do "mal inevitável"/"inevitavelmente mau". Nenhum ser humano pode existir sem matar outros organismos como vírus, plantas ou talvez animais. Nesse caso, "vida humana" é definida como "má". Mas se a vida humana é definida como mal, então ela não pode ser má, uma vez que a evitabilidade se torna impossível."
Talvez o ser humano não possa mesmo existir sem matar "vírus e plantas", mas certamente pode sobreviver sem matar animais — como milhares de veganos vivos nos provam.

(note que aqui Molyneux deixou de tratar de inevitabilidade por escolha, como no caso anterior, e passou a falar de inevitabilidade por sobrevivência: o tubarão não podia "evitar matar peixes" presumivelmente por uma falta de capacidade dele em fazer juízos éticos, de procurar alternativas, já no caso dos humanos a inevitabilidade é só porque supostamente morreríamos se evitássemos.)

Agora, mesmo se o argumento de que "não podemos viver sem matar animais" fosse verdadeiro, ele seria apenas uma alegação factualmente correta, o que não significa que ele seria eticamente significativo: e daí que isso ou aquilo é condição necessária para a vida? Por exemplo, se eu necessariamente precisar do rim de alguém para sobreviver isso me autoriza a tomar o tal rim? Aposto que não. A questão não é o que agressores precisam ou deixam de precisar para viverem, e sim o que é ou não é eticamente justo.
"E se dissermos: "é mal matar pessoas" - isso faria com que um tubarão que comesse o homem fosse mau?
Não - mais uma vez, uma vez que os tubarões não têm capacidade para evitar matar pessoas, eles não podem ser responsabilizados por tais ações mais do que um deslizamento de terra pode ser levado ao tribunal se ele mata um homem.
Da mesma forma, a moralidade só se aplica à consciência racional, devido à exigência de evitabilidade."
Este trecho apenas reforça a primeira resposta dada: ele isenta de responsabilidade o tubarão que mate, peixes ou pessoas, por ele não poder escolher. Mas a questão é isentar pessoas que matem tubarões (ou peixes, ou animais em geral), as quais podem escolher. Uma proposição moral do tipo "é mal para pessoas matarem animais*" ainda é moralidade sendo aplicada à consciência racional de humanos, que podem exercer a evitabilidade dessa conduta — tanto a evitabilidade de escolha como a de sobrevivência.

*Talvez você esteja achando o "matarem animais" uma formulação muito específica para ser universal, mas se isso é um problema, repare que quando Molyneux formula algo como "é mal pessoas matarem pessoas", o termo "pessoas" é ainda mais específico do que "animais". Na verdade, ocorre o seguinte: a exigência de evitabilidade nos leva a reduzir a formulação ao mais universal possível. A questão é apenas que Molyneux reduziu o universal a "agredir pessoas" porque tomou erroneamente como impossível a vida sem agredir animais. Mas ela é possível.
"Se eu tentar aplicar uma teoria moral a um caracol, uma árvore, uma rocha, ou ao conceito "números", estou tentando equiparar a consciência racional a entidades que não podem ser nem racionais nem conscientes, o que é uma contradição lógica. Eu poderia muito bem dizer que o Teorema de Ângulo Oposto na geometria é inválido porque ele não se aplica a um círculo, ou a uma nuvem. O TAO só se aplica a linhas de intersecção - tentar aplicá-lo a outras situações é o equivalente conceitual de tentar pintar o ar.
Em outras palavras, má aplicação não é prova de invalidade."
Mas não se está "aplicando uma teoria moral a caracóis, rochas ou árvores". Está-se aplicando a teoria moral às ações de humanos (ou melhor, às ações de agentes morais) em relação a estes seres. Estar-se-ia "equiparando estes seres a uma consciência racional" se estivéssemos defendendo que os julgamentos morais destinados às ações deles fossem os mesmos dos julgamentos destinados às nossas ações. Mas o próprio Molyneux esclarece a solução para isso, quando fala sobre como tubarões (bem como deslizamentos de terra) não podem ser responsabilizados. Havendo esta diferença (corretamente apontada pelo Molyneux, inclusive) fica claro que não está havendo equiparação alguma.

Ironicamente, é o argumento de Molyneux que se mostra como uma equiparação indevida, equiparando-nos a uma consciência irracional, se tenta isentar a nós, racionais, de responsabilidade com base em elementos que isentam os irracionais...

Tudo que Molyneux mostrou é que as ações dos animais, frente a outros animais ou frente a nós, não são passíveis de análise moral. Mas a questão simplesmente não é essa, e sim se nossas ações frente aos animais são passíveis de moralidade. A alegação com a qual Molyneux precisava lidar, mas sequer tocou, é de que "é mal para pessoas matarem animais", ou, melhor dizendo, que "é mal para as pessoas matarem, inclusive quando a vítima for um animal".

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5 comentários:

  1. É claro que humanos são capazes de se abster de comer peixe — e isso não foi em nenhum momento negado. Mas o que se queria mostrar não é que comer peixe é inevitável por parte dos humanos, mas que a regra moral “Não se deve comer peixe” é inválida, ou seja, ao tentarmos universalizá-la encontramos erros lógicos insuperáveis — e caso não a universalizemos, não se tratará de uma regra moral.

    Pode ser que seja possível sobreviver sem matar animais, mas para que fosse uma regra moral válida de acordo com o UPB, teria de ser também possível viver sem matar vírus e plantas, pois todos os citados fazem parte da mesma categoria — a dos que não possuem a capacidade de compreender conceitos, ou, mais tecnicamente, de comparar ações propostas a padrões universais abstratos.

    Stefan não está mudando sua definição de “inevitabilidade”, só está reconhecendo o fato de que uma teoria que não possa ser proposta sem ser automaticamente violada é inválida — veja a parte do livro sobre argumentos autodetonantes (“self-defeating arguments”). A proposição de uma teoria requer a sobrevivência da espécie. Se essa teoria requer a não sobrevivência — a extinção — da espécie, então ela se autocontradiz.

    O exemplo da pessoa sem o rim não é passível de ser avaliado pelo arcabouço do UPB, já que este não é capaz de analisar ações particulares, mas apenas teorias gerais. Da mesma forma que o método científico não diz nada sobre tal pedra em particular, mas sim sobre o comportamento da matéria como um todo, construções como “Aquele cara deveria ou não fazer aquilo?” são incompreensíveis ao UPB. A estrutura correta a ser usada, caso se queira verificar a validade de uma teoria moral proposta, é “X é ou não universalmente preferível?”.

    A construção “É imoral iniciar o uso da força contra humanos” não é específica demais por se restringir à humanidade, pois “universal” não significa “expandido ao maior número de entidades possível”, mas, no caso do UPB — comportamento universalmente preferível —, ao comportamento dos seres capazes de preferência. E preferência, neste contexto, tem uma definição bastante específica: é a capacidade de comparar uma ação a teorias abstratas — propriedade essa exclusiva da espécie humana.

    “Mas não se está aplicando uma teoria moral a animais”

    Na verdade, quando se diz que é imoral matar animais, o que está sendo feito é exatamente isso — e eu não sei como deixar isso mais claro.

    Quando se propõe a regra “É imoral que humanos matem animais”, está sendo violada a primeira regra (correspondente à primeira letra) do UPB — a universalidade. Você está dizendo que uma regra não universal é universalmente preferível, o que é uma completa contradição lógica. Se é imoral matar animais, então, necessariamente, deve ser imoral que animais matem animais, uma vez que se está trabalhando dentro da estrutura do UPB, que exige esse requerimento. É pela mesma razão que o UPB invalida outras teorias arbitrárias como “É imoral que civis matem civis, mas é perfeitamente moral que policiais matem civis” que os direitos dos animais não são universalmente preferíveis. Se assassinato é errado, então deve ser errado para toda a humanidade — assim como se matar animais é errado, deve ser errado para todo o Reino Animal.

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    1. "para que fosse uma regra moral válida de acordo com o UPB, teria de ser também possível viver sem matar vírus e plantas, pois todos os citados fazem parte da mesma categoria"

      A categorização da vítima é irrelevante, dado que o UPB se propõe a avaliar o comportamento executado. Molyneux fala sobre isso no caso de uma proposição sobre "estuprar idosos" — claro que logo após ele insere a ressalva "desde que a vítima seja humana", com a arbitrariedade característica dos autores nesse assunto, dizendo simplesmente algo como "a categorização da vítima é irrelevante - exceto a categorização dela como humano, aí é categorização é relevante hehe".

      "A proposição de uma teoria requer a sobrevivência da espécie."

      Requer apenas preteritamente — é preciso estar vivo para propor uma teoria ética, de fato. Disso não se conclui que a teoria proposta deva ter algum compromisso com a sobrevivência posterior do proponente ou da espécie dele. Não é assim nas teorias do método científico (como molyneux gosta de comparar), não vejo por que seria assim em teorias morais.

      "A estrutura correta a ser usada é “X é ou não universalmente preferível?”."

      Basta ajustar a frase, o raciocínio permanece o mesmo. Roubar algo, como um rim, mesmo que "para sobreviver", continua não sendo o universalmente preferível, portanto não é válido apelar para a necessidade de sobrevivência quando se trata de tomar recursos de outros ou mesmo matá-los.

      "“universal” não significa “expandido ao maior número de entidades possível”, mas ao comportamento dos seres capazes de preferência."

      Uma proposição moral do tipo "é mal para pessoas matarem animais" ainda é moralidade sendo aplicada ao comportamento dos seres capazes de preferência.

      "Se assassinato é errado, então deve ser errado para toda a humanidade — assim como se matar animais é errado, deve ser errado para todo o Reino Animal."

      É errado para todos os seres capazes de preferência matarem. Isto já é universal: é errado para mim, para você e para qualquer um capaz de preferência fazê-lo. É errado hoje, amanhã e para sempre. Aqui ou em qualquer lugar. E a exigência quanto aos agentes serem "capazes de preferência", é justificada pela necessidade de avoidability.

      A proposição que você deseja na verdade é "é errado para todos os seres capazes de preferência matarem outros seres capazes de preferência". Ou seja, requer-se para que o comportamento seja considerado errado que a vítima também compartilhe das características do agente. Mas baseado em quê? É novamente o argumento de categorização da vítima. A exigência para o agente possui um motivo claro: o avoidability. E em relação à vítima? Não se trata mais de uma preocupação com "universalidade", a qual já estava cumprida, mas sim a adição de um novo elemento: "reciprocidade".

      Será que Molyneux aplica essa exigência de reciprocidade, alegando que, dado que o comportamento de pessoas com deficiências mentais severas permanentens não pode ser considerado errado por elas não poderem ser responsabilizadas, então nós também podemos matá-las?

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    2. Rotular um argumento de arbitrário, irrelevante ou de qualquer outro adjetivo não é uma refutação de nada. A capacidade de abstração requerida pelo UPB é uma distinção objetiva entre os humanos e as demais criaturas. Se você deseja disputar essa premissa, cabe a você provar que macacos e golfinhos possuem conceitos e teorias — insultá-la não o ajudará muito na sua tarefa.

      Teorias científicas não dizem respeito ao comportamento preferível — teorias morais dizem. Uma teoria moral — i.e., sobre o comportamento preferível — que propõe como ideal um comportamento impossível de ser preferido — i.e., não matar organismos — é claramente inválida, dado que contradiz a própria definição de moralidade. Se a existência humana é automaticamente maligna, então ela não pode nunca ser maligna, e nenhuma teoria moral pode jamais ser validada, já que ações más são, por definição, escolhidas, e não automáticas.

      É problemático — para ser brando — o debate sobre o comportamento universalmente preferível ser tornado universalmente impossível por conta de seus próprios requerimentos. Essa situação não é nem minimamente análoga a uma circunstância específica em que um maluco rouba um rim de outra pessoa — que sequer pertence ao escopo do UPB, como já foi mencionado; e para o qual existe a possibilidade de adquirir um rim voluntariamente.

      Somente categorias morais estão sujeitas a considerações e análises morais — e isso é axiomático, para não dizer tautológico.

      Caso você diga que somente animais, e não todos os organismos, são seres morais, então você está criando uma distinção arbitrária sem justificá-la. Caso você diga que todos os organismos estão sujeitos à moralidade, então você, novamente, define a vida humana como inevitavelmente má — e o comportamento imoral, que é definido como evitável, se torna simultanemanete possível e impossível de ser evitado; e essa contradição lógica invalida toda a sua categorização.

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    3. Além disso, um dos principais argumentos do UPB contra a agressão, o roubo, o estupro e o assassinato é ilustrado pela situação dos dois caras numa sala: É possível que ambos, simultaneamente, mantenham a iniciação do uso da força como seu maior valor e ajam de acordo com ela? Claramente não, uma vez que, a partir do momento em que a iniciação de força é desejada, ela deixa de ser iniciação de força.

      É óbvio que você não poderia argumentar o mesmo em relação a bactérias e centopeias, que sequer são capazes de conceber valores éticos e ideais abstratos. Como o argumento funcionaria, então, para invalidar esses crimes universalmente? É outro problema que você deve resolver.

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    4. Você não lidou com a coisa que eu estava mais curioso pra ver.

      Vou retomar a pergunta usando os "dois caras numa sala": se um dos dois não possui avoidability para suas ações (por ser, digamos louco) então as ações do outro sujeito contra ele, que estão sob avoidability, deixam de estar sob juízo ético?

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